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Vale Tudo na cidadezinha de Twin Peaks?

  • João Matheus Marques e Guilherme de Almeida
  • 19 de jan.
  • 9 min de leitura

É quase um ato religioso. 


A família inteira reunida na sala de estar, dias a fio, vidrada no televisor. Sua mãe já leu todas as previsões possíveis nos tabloides de fofoca, e até mesmo seu pai – que não é lá tão chegado ao gênero – quer saber quem foi que matou o tal personagem. Esse frisson todo não se trata de um caso isolado de histeria, pelo contrário, é bem justificado.


O maior jornal da emissora foi às ruas em busca de palpites da população sobre a identidade do assassino, os bares estão lotados de apostas e os produtores do seriado gravaram 3 finais diferentes. Assim, no momento em que os créditos de abertura do capítulo começam, não há uma única alma penada na rua. Enfim, a revelação final: foi a cunhada da tia da empregada da mocinha, que apareceu por 5 minutos no primeiro capítulo.


    Chamada para um dos principais capítulos de Vale Tudo, publicada pelo jornal Estadão
Chamada para um dos principais capítulos de Vale Tudo. Foto: Estadão

“Quem matou fulano?” é uma tática narrativa utilizada quase que à exaustão pelo gênero da telenovela, e pudera, afinal, quem resiste a oportunidade de acompanhar por várias semanas seguidas uma trama de assassinato? 


Foi isso que aconteceu em 6 de janeiro de 1989, quando o Brasil parou para prestigiar o último capítulo do sucesso de audiência, Vale Tudo, novela das oito na Globo, de autoria de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, com direção de Dennis Carvalho e Ricardo Waddington. O desfecho do folhetim trouxe consigo a identidade do assassino da antagonista da trama, Odete Roitman (Beatriz Segall), uma aristocrata carioca, notória por suas falas odiosas contra o Brasil, e que foi assassinada a tiros no capítulo transmitido na noite do Natal de 1988. 


Para esconder o segredo, os autores enviaram o script do capítulo final para os atores com sete páginas faltando, uma lacuna preenchida com a gravação de cinco desfechos diferentes, cada qual com um assassino. As cenas foram filmadas no dia da exibição, ainda pela manhã, e editadas às pressas, de forma que nem mesmo os atores envolvidos sabiam qual delas seria transmitida.


foto da laura palmer twin peaks
A jovem Laura Palmer, estrela do mistério de Twin Peaks. Foto: divulgação

Da mesma forma, o seriado norte-americano Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost, também explorou o recurso no ano seguinte. Durante a primeira e (parte da) segunda temporada, a busca pelo assassino da misteriosa adolescente, Laura Palmer, serviu como propulsor da trama e capturou a atenção e curiosidade do público, gerando uma espécie de “efeito bebedouro” (quando os espectadores se reúnem no dia posterior a exibição para discutir o episódio transmitido, geralmente no intervalo do trabalho, escola, etc). Apesar disso, os criadores da série nunca esconderam que o mistério em questão era em grande parte um Macguffin, um objetivo ou elemento narrativo que impulsiona o enredo de uma história, mas cujo conteúdo específico é menos importante do que seu papel na trama. 


Ou seja, o mistério de quem matou Laura Palmer inicialmente estaria em primeiro plano, diminuindo gradualmente à medida que os espectadores conhecessem as personalidades únicas (e muitas vezes bizarras) de cada cidadão, que formavam uma teia de minúcias que contrariavam a aparência pitoresca da cidade; assim, cada episódio era realmente sobre as interações entre os habitantes da cidade. Entretanto, o grande mistério que cercava Laura Palmer teve seu fim parcialmente revelado ainda no episódio 14 da segunda temporada, quando os produtores da série pressionaram Lynch e Frost por uma explicação aguardada pelo público desde o fim da primeira temporada. A revelação teve efeito contrário ao esperado, resultando num baixo índice de audiência nos episódios seguintes e num afastamento criativo de Lynch e Frost, que só se envolveram novamente com a série durante os episódios finais. Embora ambos alegassem saber desde o início a identidade do assassino, Lynch nunca quis resolver o assassinato, enquanto Frost sentiu que eles tinham uma obrigação com o público.


Mas, mesmo sendo anterior a Twin Peaks, Vale Tudo tampouco foi pioneira na técnica. A telenovela de Glória Magadan, O Sheik de Agadir (1966) e a posterior Véu de Noiva (1969), de Janete Clair, ambas da TV Globo, contribuíram para consolidar o formato "quem matou" como uma estratégia narrativa eficaz nas produções televisivas brasileiras. Formato este que tem origem ainda na literatura ficcional, nos exemplos populares: Edgar Allan Poe (Os Assassinatos da Rua Morgue), Arthur Conan Doyle com Sherlock Holmes, Agatha Christie com Hercule Poirot e Miss Marple.


E se você consegue identificar outros elementos novelescos em Twin Peaks, saiba que não é por acaso: Lynch e Frost explicitaram em diversas ocasiões seus desejos de misturar uma investigação policial com uma novela. A existência de “Invitation to Love”, uma telenovela que os personagens de Twin Peaks assistem (e que a trama eventualmente produz paralelos com a “realidade” dos habitantes), deixa tudo ainda mais escancarado. Ao contrário do que muitos acreditam, Twin Peaks não é uma paródia da telenovela; Lynch conscientemente utiliza do gênero para contar sua história. 


A presença de personagens dúbios, desonestos ou de caráter duvidoso, como em Vale Tudo, ou a inserção de arcos narrativos que beiram o realismo fantástico de novelas como Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985) são elementos aos quais os brasileiros já estavam acostumadíssimos. Então, por que o fracasso do seriado no país, quando transmitido em 1991? A resposta se deve principalmente a própria TV Globo, que picotou os episódios, que já passavam num horário complicado (todo domingo, após o Fantástico), assim como a revelação do assassino pela Folha de São Paulo, 45 dias antes da exibição do último capítulo, também não ajudou, de maneira que o público brasileiro só conseguiria ter acesso mais fiel de Twin Peaks durante sua transmissão pela TV Record, em 1993.


Descobrir o mistério de quem teria assassinado Laura Palmer, a rainha do baile envolta em plástico, de Twin Peaks, gerou insatisfação geral para os amantes brasileiros do seriado. Publicado em 1991, o texto de Álvaro Pereira Júnior anunciava o sobrenatural autor do crime ainda nas linhas de chamada, surpreendendo leitores desavisados e deixando-os furiosos.  


manchete twin peaks folha de sao paulo 1991
Texto de Álvaro Pereira Junior, publicado na Folha de São Paulo, em 1991.

A indignação popular pode, à primeira vista, parecer um tanto exagerada, já que “spoilers” em manchetes de jornal eram comuns para novelas à época, e era pouco provável que você não ouvisse algum comentário sobre o que iria acontecer no próximo capítulo, seja no salão de beleza ou na fila do mercado. No entanto, para o formato do seriado, entregar uma revelação para o enigma mais aguardado das noites de domingo foi como pôr um ponto final forçado sobre as teorias dos telespectadores. A internet ainda engatinhava, e as discussões ao redor do mundo entre os fãs da série – que chegavam, inclusive, a organizar eventos para assistir aos episódios – também encontraram um lugar no coração dos brasileiros. 


Em Vale Tudo, ao invés da sobrenaturalidade da obra de Lynch, somos introduzidos a um olhar arguto para as faces da corrupção no Brasil, entre dilemas morais que assombram seus personagens tanto quanto os fantasmas do black lodge assombravam os habitantes de Twin Peaks. Lynch, que conheceu Dalai Lama e que sempre se interessou pela meditação e pelo onírico, trazia em suas obras símbolos e preceitos que dialogavam diretamente com a espiritualidade, e Twin Peaks foi a porta de entrada para trazer esses temas à televisão. 


Gilberto Braga, por sua vez, enxergou no período político de redemocratização do Brasil, depois da Ditadura Militar (1964-1985) e longe de censuras, um cenário frutífero para trazer à tona diversos temas relacionados à moral social, como corrupção, preconceito e o infindável jogo de interesse de elites que comandavam o país. 

elenco de vale tudo
Elenco de Vale Tudo. Foto: divulgação

O que vemos em escala macro em Vale Tudo também pode ser observado em Twin Peaks através de diferentes dinâmicas de poder – podemos estabelecer, por exemplo, um paralelo entre a influência e poder de Odete Roitman (Beatrice Segall) e Catherine Martell (Piper Laurie), mulheres mais velhas que parecem manipular tudo e todos ao seu redor por razões gananciosas.


Antes até mesmo de Odete ou Maria de Fátima, a trapaça e a cobiça estrelam como as verdadeiras vilãs, em uma bola de neve que não pode ser contida por um mero disparo, e o vilarejo lynchiano parece regido por uma alternância em que ora mandam espíritos de outra dimensão, ora mandam a ganância e a cobiça dos empresários. 


Em um cenário de sitcoms e tramas episódicas em que tudo parecia se resolver magicamente ao fim dos capítulos, Twin Peaks conseguiu preservar a originalidade de seu mistério durante uma temporada e meia, com personagens peculiares e uma novelesca multiplicidade de enredos. O seriado revolucionou a televisão ao ponto de ser difícil classificá-lo a partir de um único gênero. Entre comédia, drama, horror e suspense, tudo paira sobre a luz da genialidade lynchiana e o engenho para o formato televisivo de Mark Frost. Porém, o sétimo episódio da segunda temporada, intitulado Almas Solitárias, veio com a revelação do autor do crime; e depois de tal descoberta, o espírito da série esmaeceu.


David Lynch defendia que um mistério deveria continuar sendo um mistério, e na sucessão de eventos que culminou no fim do seriado, essa crença se provou correta. Com David envolvido em outros projetos, incluindo Wild at Heart,  novos showrunners criando núcleos impensáveis para o propósito original da trama e com o elo criativo entre ele e Mark Frost cada vez mais abalado pelos incessantes apelos feitos à ABC, pedindo para que mantivessem o enigma vivo, o show desandou.


Em um texto publicado pelo Jornal do Brasil, no (fatídico?) dia 24 de dezembro em que Odete Roitman morreria durante a ceia de milhares de brasileiros – que juntos, somavam o score de 81 pontos de audiência –, brincava-se com a ideia de que a personagem “como boa perua, resolveu morrer de véspera”. Beatriz Segall, que deu vida às tramoias da socialite e presidente do grupo Almeida Roitman, afirmou que antes da ceia gostaria de assistir à morte de sua personagem, desejo este compartilhado com gosto pelos telespectadores, que atrasaram um pouquinho a comemoração para prestigiar algo que aguardavam muito mais do que o peru: a morte de uma vilã. 


No dia seguinte, entre o burburinho das ligações entre parentes ávidos para espalhar o mais recente assassinato para seus entes queridos, no maior espírito natalino, O Globo publicou um texto que dizia que o prato preferido das famílias brasileiras, naquela noite, havia sido o sangue de Odete. 


A comoção foi motivo suficiente para movimentar a economia nacional. A Rede Globo iniciou uma mórbida – porém eficaz – promoção, em parceria com a empresa de caldo de galinha, Maggi: os telespectadores deveriam enviar cartas à emissora informando seus principais suspeitos para o crime, valendo 5 milhões de cruzados; operadores da Bolsa de Valores reuniram apostas que chegaram ao número de 50 milhões; bicheiros do Rio de Janeiro organizaram um bolão de apostas – que arrecadou 350 milhões de cruzados em apenas 10 dias –, e aqueles que haviam votado em Leila, personagem de Cássia Kiss e assassina de Odete, ganharam até 6 vezes mais, já que o número correspondeu à  “zebra”.


Laura Palmer e Odete Roitman carregaram um verdadeiro fenômeno televisivo em suas costas e até hoje, quem vê Sheryl Lee ou Beatrice Segall imediatamente associa seus rostos aos das personagens. Mesmo sendo muito diferentes em essência (Laura, uma mártir violentada que experimenta tormentos inimagináveis e Odete, uma empresária cruel que manipula todos ao seu redor), ambas movimentaram uma geração na busca por respostas. 


Lynch, Sheryl Lee (Laura Palmer) e Moira Kelly (Donna Hayward) no set de Fire Walk With Me
Lynch, Sheryl Lee (Laura Palmer) e Moira Kelly (Donna Hayward) no set de Fire Walk With Me

Inspirado no filme Laura, de 1944, que também apresenta o desaparecimento de uma jovem, Lynch criou a rainha do baile cocainômana, cujos segredos eram revelados a cada episódio. Inicialmente, porém, a participação de Sheryl no seriado seria bem mais curta: ela interpretaria o cadáver de Laura e estamparia os icônicos  porta-retratos da colegial. Sua atuação e a história da personagem em andamento, porém, encantou David, que lhe deu uma profundidade e sensibilidade muito maior e lançou o filme Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (1192), no qual finalmente conhecemos a personagem – que havia sido introduzida somente por relatos e fofocas dos habitantes da cidadezinha – através de suas próprias lentes.  


Odete, por outro lado, representa a fria e arrogante elite do Brasil, com falas preconceituosas e um viralatismo com relação a tudo que vem de fora do país. Apontada como a maior vilã da teledramaturgia brasileira, a odiosa diretora da companhia de aviação TCA não hesitava em manipular seus filhos, chegando ao ponto de até mesmo incriminar sua filha, Heleninha (Renata Sorrah), por seus próprios atos. Ao decorrer da trama, todavia, somos apresentados ao outro lado da maquiavélica ricaça: o amor. A personagem, que mantém um caso com César Ribeiro (Carlos Alberto Ricelli), possui um apartamento exclusivo para amantes, consome vídeos pornográficos e acaba julgada por sua própria família quando descobrem que ela se relaciona com César. 


Twin Peaks ganhou um revival em 2017, que contou com boa parte do elenco original e recebeu diversos elogios dos fãs, já que Lynch finalmente conseguiu seguir o rumo original esperado para a série antes de seu cancelamento, e Vale Tudo ganhará um remake este ano, dirigido por Manuela Dias – que vem causando polêmica em entrevistas ao afirmar mudanças no caráter de Odete e dos demais personagens, buscando “atualizar” a personalidade deles para novos tempos. Previsto para março deste ano, a novela estreará como uma comemoração de 60 anos da emissora. 


Quem ouve o início de cada abertura, seja nas notas ascendentes do piano na abertura de Twin Peaks, composta por Angelo Badalamenti, ou na voz de Gal Costa cantando Brasil, sabe reconhecer imediatamente o que está passando na tevê. E quem ouve falar em Laura Palmer ou Odete Roitman, incansavelmente referenciadas na mídia, ainda pode se perguntar quem as matou. É assim que tanto a série quanto a novela atestam sua imortalidade, influenciando seus respectivos gêneros para sempre.  


Para David Lynch (1946-2025) 

e Gilberto Braga (1945-2021)


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