Um coração vulcânico: 10 anos do álbum Vulnicura, de Björk
- João Matheus Marques
- 20 de jan.
- 6 min de leitura
Uma revisita ao projeto mais íntimo da cantora islandesa.
Tudo começa com uma ferida.
A aliança está fincada no dedo médio. Seu corpo é vestido de látex e adornado por uma combinação similar a espinhos ou flechas de cristais. No peito, ostenta uma enorme fenda, com o formato de uma vagina, e existe algo de mártir na maneira em que suas mãos se dispõem e na forma com que seus olhos parecem não focalizar objeto algum.
Esse retrato parece atravessar a dor, congelá-la, e através dela, então, prenunciar a catarse adiante. A descrição corresponde à capa do nono álbum de estúdio da cantora islandesa Björk, Vulnicura, lançado em janeiro de 2015, e a figura singular que observamos é a dela. Quando ganha um nome, a mulher santificada adquire um passado, e sua expressão incógnita ganha os contornos da vida da artista. Suas palmas estão estendidas, seu peito está aberto e não há nada oculto que não se revele em seu projeto que melhor retrata a visceralidade da perda. Para a escolha do título, Björk decide unir duas palavras em latim: vulnus e cura, que, juntas, expressam uma ideia de cicatrização, de cura para feridas. A ferida mais profunda, aqui, é a do amor, ou a do imenso buraco negro deixado em sua ausência.

Surgindo com a clareza de um ciclo que se encerra, o álbum foi lançado após o término do longo relacionamento da islandesa com o artista plástico inglês, Matthew Barney, com quem foi casada durante 13 anos e teve sua filha, Ísadóra, em 2002. O casal era reverenciado no meio artístico e esteve junto no projeto audiovisual Drawing Restraint 9, dirigido por Barney, o qual Björk foi responsável pela trilha sonora. Em 2013, porém, para o choque daqueles que os acompanhavam, ambos já não estavam mais juntos.
Dois anos depois, no dia 13 de janeiro, Björk anunciou seu próximo projeto através de um bilhete em suas redes sociais. Vulnicura estava previsto para março de 2015, mas o vazamento das músicas na internet fez com que ela liberasse as faixas de surpresa, no dia 20 de janeiro, sem clipes ou cópias físicas, que só seriam lançados alguns meses depois.
O disco, então, narra o luto pela dissolução de sua família, de seu amor e de quem ela foi durante os anos em que ela e o marido estiveram juntos. O léxico da morte de quem eram enquanto casados se faz presente em um elo íntimo com o ouvinte. Durante entrevistas à época da estreia do álbum, quando questionada sobre o divórcio, a cantora expressou uma impossibilidade em falar do ocorrido e de interpretar certas músicas, cancelando apresentações e afirmando que se envergonhou em cantar a faixa Black Lake, escrita apenas 3 meses após o fim, até mesmo para amigos próximos.
Através de um longo processo de cura, as 9 faixas são dispostas em uma linha narrativa, em que cada canção, no encarte do disco original, é acompanhada pela informação do período em que foi escrita, meses antes ou depois do divórcio, e assim oferece uma cronologia que culmina na separação. Essa maneira de dividir o tempo, quase como um diário de bordo do lento naufrágio do amor rumo ao abismo e ao que há depois dele, possibilita mais do que apenas a compreensão do luto: permite o mapeamento de suas cicatrizes e a trilha dos caminhos que elas oferecem, trafegáveis mesmo 10 anos depois do lançamento.
“Fui fazendo o disco conforme meu casamento ia se desfazendo, e me surpreendi pela forma como acabei produzindo um documento do período, da dor intensa da perda à recuperação lenta e finalmente à cura. Está tudo no disco.” – Björk, em conversa com o Estadão.
No entanto, mesmo que a dor seja um longo caminho a ser trilhado, Vulnicura, é seu álbum produzido com maior rapidez, fluindo como uma espécie de desengasgo durante o processo de cura. Isso se deve à parceria com a compositora e DJ venezuelana, Arca (Alejandra Ghersi), que conseguiu produzir as batidas em poucos meses e construir uma relação de profunda amizade com Björk. Entre vocais intercalados, arranjos de cordas feitos pela própria islandesa e as batidas frenéticas de Arca, o disco constroi uma atmosfera que se destaca até mesmo em meio ao seu experimentalismo habitual e se eleva através de uma sonoridade gloriosa que garantiu o apreço da crítica especializada.
A primeira faixa, Stonemilker, marca o início do fim da relação e alude à ideia de tirar leite de pedras, como uma alegoria às dificuldades de se transpor as barreiras emocionais de alguém e compreender os próprios limites dentro de um relacionamento em estado terminal. Em Lionsong, essa incerteza reaparece, na esperança de que talvez ambos superem o longo duelo. Porém o desejo de que ele volte a amá-la vem também acompanhado da compreensão dos sentimentos como indomáveis e complexos e que talvez, afinal, uma relação não seja apenas uma domesticação.

No clipe de Lionsong, dirigido por Inez & Vinoodh, Björk aparece utilizando o traje da capa do disco, enquanto os espinhos de seu corpo liberam esporos no ar. A fenda em seu peito pulsa, junto à melodia, e parece cantar seu sofrimento. Se em faixas como 5 Years, de seu álbum, Homogenic, Björk desafia o objeto de seu desejo a lhe mostrar suas palmas, afirmando que já está cansada de covardes, as suas aparecem, agora, estendidas, não em forma de rendição, mas como um convite à leitura de suas linhas.
Em History of Touches, ela descreve a sensação de capturar o que se esvai através do tato. Desperta em uma noite, busca o toque de seu amado, sabendo que essa é provavelmente a última vez em que estão juntos na mesma cama. A beleza devastadora do efêmero se completa em uma descrição tátil, que assimila todas as vezes em que seus corpos se tocaram como um glossário da finitude do amor.
Black Lake e Family talvez sejam as músicas mais sinceras e dolorosas de toda a sua carreira. O abismo da perda que transforma seu coração em um imenso lago negro; o abandono daquilo que lhe parecia sagrado por quem lhe amava; as batidas explosivas, cordas tensionadas e sua voz transpassada pela dor. Tudo isso constroi um retrato cru do abandono, mas também do renovo e da esperança quando canta, em Black Lake: “Sou um foguete brilhante / Voltando para meu lar / Enquanto entro na atmosfera / As camadas queimam uma a uma”. Em Family, a cantora questiona se há algum lugar onde possa lamentar a morte de sua família, enquanto o som de violinos cresce ao fundo. Na versão visual elaborada em conjunto com Andrew Thomas Huang, Björk, aprisionada dentro de uma rocha, experimenta um renascimento, enquanto linhas costuram a fenda em seu peito. Fios similares estão presentes no clipe de Cocoon, do álbum Vespertine (2001). No fim, ela levanta-se, afastando-se de seu casulo e de sua paralisia e segue rumo a uma nova direção.
Enquanto Vespertine, 4° álbum de estúdio de Björk, carrega consigo o lirismo e a suave esperança da paixão e do desejo, Vulnicura retumba, solene e sagrado, como um mantra funesto. Muito além de sua antítese, Vulnicura é seu desfecho. O derradeiro ponto final de uma longa história de amor. No design do disco, a fonte da tipografia do segundo parece uma nova versão caótica e distorcida do primeiro, assim como uma relação que se desfigura e transforma. Na letra, a frase: “I Love Him” é repetida inúmeras vezes, e no clipe, a cantora costura um vestido de noiva em sua própria pele. O que esse amor pode ter se tornado ao longo desses 13 anos de matrimônio? O que a paixão se torna quando chega ao fim? Tudo isso é encontrado embaixo dos escombros de Vulnicura.

Clipe de “Notget”, dirigido por Warren du Preez e Nick Thornton Jones. Nele, Björk passa por uma verdadeira metamorfose enquanto o cenário ao seu redor transforma-se de preto e branco para neon.
A última faixa, Quicksand, é, na verdade, sobre a mãe de Björk, Hildur Rúna Hauksdóttir, vítima de um ataque cardíaco que a deixou em coma por 6 dias. Na letra, a cantora diz: “A filosofia de nossas mães / É igual areia movediça / E se ela afundar / Eu vou junto com ela”. Assim como Heirloom, do Vespertine, Quicksand fala sobre a maternidade como uma forma de transmitir a sua “bagagem” para uma outra geração como uma força cíclica da natureza. Björk também explorou a relação com a mãe e as filhas em seu álbum mais recente, Fossora, em faixas como Her Mother’s House, que canta ao lado da filha, Ísadora.
Em sua dor vulcânica, a erupção das lágrimas corroem tudo que atravessa o caminho. A trilha magmática parece a destruição, um mundo sem vida. Mas os meses passam, o ecossistema se renova, a esperança renasce, disposta em um novo caminho, e seu próximo disco, Utopia, surge com o frescor de uma sucessão ecológica que se aproveita da matéria orgânica residual depois da destruição.
Muito além de somente retratar o fim de um relacionamento, Vulnicura representa o reencontro de Björk com sua liberdade de criação e individualidade. Longe de um relato autopiedoso marejado de lágrimas, a artista nos oferece a constelação de sua vida eclipsada por uma nova maneira de lidar com o fim, seja ele qual for.
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