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Guilherme de Almeida

Quando o amarelo era "giallo": morrer ao som de rock italiano nunca foi tão chique

Sessão Dupla: Giallo e Folk Horror


Imagine que você é um escritor americano. Você vive em Roma e anda pelas ruas à noite em busca de inspiração e o processo criativo pode ser desafiante, mas como não ter estímulo criativo num lugar tido como ponto de referência para a evolução do direito, da política e da religião ocidental? O financiamento de um Mecenas ajudaria, porém esse é um pensamento tão utópico no momento que você espera ganhar alguma quantia de dinheiro com seu novo livro sobre aves. 


No percurso, finalmente um avistamento interessante: uma galeria de arte. Espaços como esse não são exatamente uma raridade na capital, entretanto o prédio em questão irradia uma luz clara e forte que, quando refletida sobre suas paredes brancas e lisas, provoca um destaque ainda maior no seu interior, quase todo visível para os transeuntes, em virtude de suas longas paredes de vidro.


Cena de abertura de O Pássaro das Plumas de Cristal (1970)
O Pássaro das Plumas de Cristal (1970)

Os arredores da galeria estão quase vazios, se não fosse por você, que observa o luminoso prédio do outro lado da rua. Por certo, o inusitado acontecimento poderia servir como fonte inspiradora, mas é outra visão que te chama atenção: dentro da galeria é possível visualizar dois indivíduos num intenso embate corporal. Você quase não acredita no que vê, mas é real, e está ocorrendo na sua frente. Ao arregalar os olhos, a visão se torna mais clara, um homem de capa preta, chapéu e luvas esfaqueia uma linda mulher vestida de branco.


O homem encapuzado foge, enquanto a mulher desce as escadas agonizando. Você se desespera, tenta em vão ajudar a moça, mas já é tarde demais. A parede de vidro parece impenetrável, quase como uma armadilha, e a mulher morre clamando por ajuda na sua frente. Sua vida nunca mais será a mesma.


Esse é o cenário que dá início ao giallo O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), filme italiano de horror que, juntamente a O Gato de Nove Caudas (1971) e Quatro Moscas Sobre Veludo Cinza (1971), integra a "Trilogia dos Bichos" (ou dos Animais), nome dado aos três primeiros longas dirigidos pelo mestre do horror italiano, Dario Argento. "A Trilogia dos Bichos" é toda permeada por essa sensação de impotência e encarceramento, em que tudo é fortemente influenciado por um clima de suspense assumidamente hitchcockiano.


Apesar de hoje ser mais conhecido por sua "Trilogia das Mães" iniciada com Suspiria (1977) e encerrada apenas com O Retorno da Maldição - A Mãe das Lágrimas (2007) , Argento também teve uma carreira cinematográfica de grande sucesso comercial, chegando a alcançar o mercado internacional diversas vezes durante as décadas de 70 e 80, com produções que ajudaram a consolidar o gênero de filmes conhecido como giallo (amarelo, em italiano). Na própria sequência introdutória de O Pássaro das Plumas de Cristal, narrada no início deste texto, já podemos visualizar alguns dos tropos e elementos que caracterizam o gênero: a presença de um assassino misterioso que utiliza uma combinação de luvas de couro pretas, máscara, óculos escuros, chapéus e sobretudo (e cuja identidade só será revelada ao fim da produção), belas mulheres sendo assassinadas em sequências com violência excessiva, assim como um protagonista masculino que presencia o crime e posteriormente se torna alvo do assassino ao tentar solucionar o crime. 


Você pode estar se perguntando agora “mas isso não é um slasher?”


De fato, muitos arquétipos e narrativas típicas do giallo foram incorporadas ao slasher, porém o giallo apresenta outras individualidades que o tornam uma categoria única e peculiar. Os protagonistas desses filmes não têm qualquer ligação com os assassinatos até que eles ocorram, mas acabam envolvidos na investigação ao testemunharem um dos crimes. Quando homens, podem ser turistas, viajantes ou detetives particulares; quando mulheres, jovens solitárias ou isoladas em um ambiente estranho ou estrangeiro. O mistério principal é a identidade do assassino, a qual costuma ser desvendada no clímax, revelando-se como outro personagem importante.


Cena icônica de Baía de Sangue (1971) com uma foice sendo apontada para o pescoço de uma mulher
Baía de Sangue (1971), uma das maiores inspirações do gênero "slasher"

Uma característica constante do giallo, além de seus títulos longos e criativos, é o desinteresse por uma narrativa lógica ou consistente. Apesar de muitos apresentarem uma estrutura básica de mistério, é comum encontrarmos enredos estranhos ou ilógicos, com uma abordagem não realista na atuação, nas motivações dos personagens e nos diálogos.  A estrutura desses filmes, por vezes, também se assemelha ao gênero de mistério com horror das revistas pulp, trazendo influências de autores como Edgar Allan Poe e Agatha Christie, de forma que mantêm o elemento investigativo dos romances policiais, mas os reinterpretam ao incorporar características de terror e influências da tradição italiana de ópera e do teatro grand guignol. Da mesma forma, são notáveis por seus temas psicológicos de loucura, alienação e sexualidade, com personagens que muitas vezes apresentam sintomas como ilusão, alucinação ou paranoia delirante.


Mesmo com temas comuns encontrados em vários de seus exemplares, o gênero não possui uma forma narrativa consistente. Apesar disso, eles raramente abrem mão de longas sequências de assassinato brutal,  que ocorrem quando a vítima está em um momento de maior vulnerabilidade, como durante o banho ou semivestida; muitas dessas cenas possuem uma atmosfera de voyeurismo, chegando por vezes a mostrar o assassinato pela perspectiva do próprio assassino, com a aparição de uma mão enluvada de preto segurando uma faca em primeira pessoa. 


Boneco de louça quebrado no chão
Profondo Rosso (1975)

As obras de Dario Argento, por sua vez, trabalham alguns desses traços em acréscimo com outras particularidades do diretor. Em Prelúdio Para Matar/Profondo Rosso (1975), um pianista testemunha o assassinato de um médium e decide investigar o caso por conta própria, já em Phenomena (1985), uma jovem com habilidades psíquicas investiga uma série de assassinatos em uma escola para meninas, enfrentando um assassino que tem a capacidade de controlar insetos. Ambos os filmes possuem um visual estilístico elegante com cores vivas, ângulos não convencionais, enquadramento propositalmente desconcertante e close-ups simbólicos, assim como uma trilha sonora marcante de rock progressivo e instrumental, composta pela banda Goblin, além de apresentar cenários surreais de interiores estilizados e moda surrealista. Os dois filmes incluem a presença da atriz Daria Nicolodi, ex-esposa de Argento, com quem teve a cineasta e atriz, Asia Argento.


A contribuição de Dario Argento foi indispensável para a consolidação do giallo, embora isso não signifique dizer que o mesmo foi o criador do gênero, que tem origem num gênero literário de mesmo nome, e inclui qualquer romance que envolva crime e mistério. O diretor teve forte influência de outro mestre do horror, o cineasta italiano Mario Bava. Se Argento tornou o giallo um grande fenômeno cultural com O Pássaro das Plumas de Cristal, Bava criou as bases centrais do que ainda viria pela frente, primeiro com A Garota que Sabia Demais (1963), seguindo a história de Nora, uma jovem americana que viaja para Roma e testemunha um assassinato durante sua estadia, e depois com Seis Mulheres para o Assassino (1964), cuja trama gira em torno de um assassino mascarado que começa a eliminar modelos e funcionários de uma agência de moda; esse último possui um visual extremamente marcante, com cortes vivas e forte uso de luzes coloridas néon.


Cena de Seis Mulheres para o Assassino (1964) de uma mulher atendendo um telefone vermelho
Seis Mulheres para o Assassino (1964)

Diretores como Lucio Fulci, Umberto Lenzi, Riccardo Freda e Antonio Margheriti apoiaram a criação de giallo durante os anos 70, sendo logo acompanhados por outros cineastas notáveis, como Sergio Martino, Paolo Cavara, Armando Crispino, Ruggero Deodato e Lamberto Bava, filho de Bava. O gênero também chegou na Espanha no início dos anos 70, quando se misturou a um grupo de filmes alemães, conhecido como krimi. O giallo alcançou seu auge entre 1968 e 1978, com o período mais produtivo entre 1971 e 1975, em que mais de 100 filmes foram lançados. Contudo, a popularidade do gênero começou a declinar gradualmente, resultando em orçamentos e valores de produção cada vez menores.


Embora o ciclo giallo tenha diminuído na década de 1990 e tenha apresentado poucas novidades nos anos 2000, ainda há produções nesse estilo, principalmente por Dario Argento, que em 2009 lançou Giallo, uma homenagem à sua extensa carreira no gênero. Além disso, os codiretores Hélène Cattet e Bruno Forzani lançaram Amer em 2009, que foi bem recebido pela crítica e incorpora trilhas sonoras de clássicos de um gênero que também teve forte influência diante dos slashers americanos dos anos 80, em especial, o filme Baía de Sangue (1971), de Bava.


Diversas tentativas de reaver o giallo foram produzidas no cinema recente, seja por filmes que se inspiram ou que afirmam ser uma obra genuína desse tema. Alguns falham, como Noite Passada em Soho (2021) e Vestido Maldito (2018), enquanto outros conseguem transmitir uma atmosfera mais assertiva, tal qual os títulos Maligno (2021) e Faca no Coração (2018), esse último com uma abordagem queer do gênero.


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Agora você pode conferir a segunda parte da sessão no texto de João Matheus Marques sobre o gênero Folk Horror, disponível na newsletter Contatos Imediatos (@contatosimediatos_): https://contatosimediatos.substack.com/



 


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