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Por que ser contra sexo na arte apaga a resistência à ditadura militar?

  • Priscilla Vituriano
  • 11 de jan.
  • 6 min de leitura

No Brasil, há um nome esquecido da literatura: Cassandra Rios, a autora maldita. A escritora lésbica e brasileira, pseudônimo de Odette Pérez Ríos, se nomeou em homenagem à sacerdotisa da mitologia grega por quem Apolo se apaixonou e prometeu o dom da profecia. Entretanto, ao ser rejeitado, a amaldiçoou para que ninguém acreditasse no que ela previsse.


Cassandra para a Revista Manchete, 1974 / Foto: José Castro. Acervo: Kyara Vieira
Cassandra para a Revista Manchete, 1974 / Foto: José Castro. Acervo: Kyara Vieira

Cassandra previu a chegada do Cavalo de Troia, mas foi veementemente ignorada. A história serviu de base para o Mito de Cassandra, descrevendo quando mulheres não são ouvidas ou suas palavras não têm credibilidade apenas por serem mulheres — e, no caso de Rios, por conta de sua sexualidade e gênero textual. A autora usou o pseudônimo para caracterizar o fato de ter sido rejeitada por todas as editoras de São Paulo, o que a fez publicar seu primeiro livro de temática erótica lésbica, A Volúpia do Pecado, com dinheiro emprestado da mãe. Aos 16 anos de idade, o livro do amor entre duas adolescentes foi um sucesso de vendas, sendo reeditado nove vezes em cerca de dez anos.


Agora seus livros são difíceis de encontrar. Até mesmo online, o que encontramos são livros escaneados e quase impossíveis de ler. Nas maiores bibliotecas do país, encontramos poucos, alguns na seção de obras raras. O que fez da grande Cassandra Rios, uma das únicas autoras a viver inteiramente da venda de livros, abrindo até mesmo sua própria livraria, a cair no anonimato do tempo, mesmo entre a população LGBTQIA+? A censura da ditadura empresarial-militar.


Rios escondia seus próprios livros para não serem confiscados, foi chamada de “escritora maldita” pelos militares por se negar a parar de escrever, publicando até clandestinamente, mesmo sendo a escritora recordista de vetos do período militar: 36 dos seus 50 livros foram censurados. Sua popularidade entre as classes mais pobres às mais abastadas do país a tornaram a primeira escritora brasileira a vender 1 milhão de exemplares em 1970.


O motivo da censura de Cassandra Rios era evidente: sua escrita feria “a família, a moral e os bons costumes”. Com a perseguição, sua livraria faliu e o que temos hoje é o resultado das tentativas de apagá-la da história da literatura nacional, o que não funcionou, é claro, pois aqui estamos resgatando seu legado. Rios não está mais aqui para se defender, faleceu no Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 2002, mas nós estamos.


"Angela Ro Ro", primeiro álbum de Angela, em 1979
"Angela Ro Ro", primeiro álbum de Angela, em 1979

Além de Cassandra, outros nomes também sofreram censuras por abordar tópicos como erotismo lésbico, sexualidade da mulher e até mesmo menstruação, tais quais o ícone da música, Rita Lee, por dizer “me deixa de quatro no ato” na música Lança Perfume e “mulher é bicho esquisito, sangra todo mês” em Cor de Rosa Choque; outro grande nome, Angela Ro Ro, foi a primeira cantora brasileira assumidamente lésbica, dona de músicas sensuais e românticas com seu ar de blues, no mesmo período, perdeu a visão de um olho e parte da audição.


Qual o motivo de sexo, sexualidade e o corpo da mulher serem tão ofensivos para os militares? Precisamos lembrar que sexo é um elemento cultural, muda conforme o país, região e período histórico. E como a percepção de sexo se modificou do período militar para o Brasil pós golpe de 2016? Com a ascensão do neopentecostalismo, juntamente à nomes dos saudosistas da ditadura como o ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro, sexo voltou a ser um tabu — ou talvez nunca tenha deixado de ser.


Com as desculpas de ser family-friendly, até canais de streaming estão criando funções para pular as cenas de sexo de suas produções caso o telespectador queira. Com uma visão utilitarista se sexo é necessário ou não, a crítica diante dessa pauta não se iniciou com a mesma intenção. Em perspectivas feministas, questionava-se a maneira com que as cenas de sexo eram usadas em produções televisivas e cinematográficas, desde usar abuso sexual como um meio de “dar força” para personagens (e não traumatizá-las) a gravar cenas de sexo em male gaze (inclusive, completamente diferente do significado atribuído à trend do TikTok). Mudar o modo como são produzidas não significa parar de produzir. Desse modo, dá a entender que se não for de um jeito não tem como ser de outro.


Dito isso, como reinvindicar sexo como algo “desnecessário” apaga a história de resistência à ditadura militar no Brasil? Para entender o porquê de sexo ter um estigma, precisamos entender o que era sexo naquele período — e o que é, até hoje, nas religiões cristãs do país.


Tempo e idade, assim como o sexo, também não são inatos, mas socialmente moldados. A percepção cronológica de idade, até determinado período, era pontuada pelo matrimônio. É popular até hoje, por exemplo, casar menores assim que completam dezesseis anos (idade mínima permitida para casar no Brasil, com permissão dos pais), buscando evitar que “se percam no mundo”, vide iniciar a vida sexual antes do casamento. Claro, levando em consideração quando permitem o casamento de meninas até antes do que é permitido por lei, normalmente com maiores de idade, o que as afasta de seus vínculos com a infância, com amigas e até mesmo com a própria família, pois agora priorizam a sua “nova família”. Essa concepção de “família” tem espaço no topo da hierarquia de relações, isolando meninas e mulheres do convívio social.


No caso de algumas mulheres, por exemplo, o único meio de convívio se torna a igreja. Essas questões dependem, muitas vezes, do contexto social e financeiro dessas mulheres, entretanto, essa regra não é uniforme em questões de gênero, pois o marcador da vida adulta não é o mesmo para homens e mulheres.


Virgindade é um estigma feminino, mas o rito de passagem dos homens. Para eles, a perda da virgindade faz com que deixem de ser meninos para se tornarem homens, enquanto para mulheres, isso se transfigura no matrimônio — a perda da virgindade só seria depois. O conceito de juventude, para os homens, se baseava na famosa fase de “aproveitar a vida”, ou seja, ter liberdade de vivências sexuais diversas até o casamento, quando “abandonaria essa vida”. A vida sofreria a incisão da vida de liberdade sexual versus vida matrimonial (alô, alô Complexo de Madonna-Prostituta), portanto, em teoria, os homens iriam se redimir da sua vida de pecado no casamento, sendo a esposa o pilar para “consertar” a vida prévia do marido. 


A vida é dividida em dois períodos, a pré e a pós matrimônio, sendo a vida pré-matrimonial das mulheres, uma preparação para o casamento, ou seja, lhes era negado o direito à uma vida prévia, pois essa só começaria de verdade após o casamento — e, novamente, com a perda da virgindade. A preparação para o casamento se dava para aprender a como fazer a manutenção da vida social, que normalmente é mantida pelas mulheres, dando liberdade para os homens continuarem com suas personalidades, defeitos e erros, sem se importar com comportamento social e deixando as mulheres responsáveis pela contenção de danos, como se desculparem por suas ações e lidarem com a carga de mudar a percepção dos outros sobre eles e, é claro, enquanto continuam com sua vida pré-matrimônio por baixo dos panos.


O sexo e a concepção de vida adulta eram artifícios primordiais no período ditatorial: as jovens seriam vítimas atraídas, principalmente por meio do sexo, pelo comunismo, para se desviarem do seu caminho. O sexo era a porta de entrada para o comunismo; e considerar os jovens inocentes e incapazes de pensar por si mesmos era um modo de calar suas reivindicações. Até o século XIX, o conceito de infância não existia, portanto, crianças eram consideradas adultos em miniatura. E se o conceito de infância é historicamente recente, o de adolescência é ainda mais, conceituado apenas em meados do século XX, quando se consolidou com mais força nos anos 80 e 90.


Capa da Revista Lampião, edição de outubro de 1978, com Cassandra Rios
Capa da Revista Lampião, edição de outubro de 1978, com Cassandra Rios

O cristianismo, no auge do poder, impôs não apenas com quem se relacionar, mas a “função” de se relacionar: sexo deveria ser para fins de reprodução, não para prazeres carnais. Durante a época, até a posição sexual no ato era imposta, a conhecida “posição do missionário”, sendo uma das únicas posições sexuais permitidas para missionários da igreja católica. O modo de fazer sexo, beijar, acariciar, tocar, o que é considerado atraente, erótico ou sexual, como é despertado e sentido também é pessoal e cultural, pois nenhuma percepção é igual em todo país, cultura ou época.


Como tudo citado acima, podemos entender as razões pela qual o sexo era uma arma contra a repressão, principalmente por meio da arte. A ditadura industrial-militar sofria de impotência sexual e, frustrada, não deixava mais ninguém gozar. Enquanto impôs medo de que o sexo seria usado por comunistas para desviar seus filhos, lucrava com redes de móteis na surdina; vendia a imagem da mulher brasileira como um objeto sexual para países estrangeiros, visando atrair os homens de fora.


Todavia, a mulher como objeto sexual a ser consumido se abstrai de prazer sexual em si mesma, pois isso a tornaria autora do seu próprio prazer ao não ceder para dar prazer ao outro. Abrir mão do sexo e deixá-lo ser apenas uma arma repressora é se adequar à essa mesma repressão, pois não modifica sua forma. Não entender a importância do sexo nas obras, principalmente brasileiras, é apagar a história do próprio país. Por isso, mesmo em outros períodos ditatoriais, como o Estado Novo, encontremos autoras como Pagu, escutemos O Sorvete de Tuca e reinvidiquemos o que nos foi tirado, ao invés de jogar mais pás de terra em cima do que querem que joguemos: nosso passado.

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