Por que choramos com "Central do Brasil"?
- Thiago Poliano
- há 4 dias
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Atualizado: há 2 dias
JOSUÉ: Como eles medem um quilômetro?
DORA: Um quilômetro são mil metros.
JOSUÉ: Mas como eles sabem que tem mesmo mil vezes? Como eles contam?
DORA: Eles inventam.
Nessa conversa, aparentemente simples, disfarçada de uma justaposição irônica da ingenuidade de Josué e o cinismo enrijecido de Dora, há, na realidade, um questionamento sobre arbitrariedade. Num sentido muito amplo, inclusive.
É fato que nessa cena, nós, os espectadores, lembramos de que Josué é uma criança e que indagaria, assim como todas as outras, sobre o mundo ao seu redor. Buscaria na figura do adulto mais próximo a resposta, esse que seria capaz de decifrar a sua dúvida, e Dora foi o que lhe restou. Enquanto investiga o mundo, Josué busca algo que o conforte, que dê cores às formas, cheiros aos montes e corpo aos números. Sabemos que isso é impossível. E Dora nos confirma isso quando diz que se inventa o quilômetro. Mesmo que grosseira, ela tem razão.

Foto: divulgação
Poucas são as palavras capazes de elogiar Central do Brasil (1998), de Walter Salles. Não por causa, necessariamente, dos complexos e bem trabalhados elementos cinematográficos que, com certeza, merecem elogios; poucas palavras são capazes de elogiar a verticalização estética do filme, isto é, a profundidade de “se fazer sentir”. Deveríamos prestar atenção em algo precioso do longa que, até então, escapa de uma ampla discussão: um sentimento íntimo inominado, entranhado em toda vicissitude do filme. É por causa desse sentimento posto à tela que é tão difícil delimitar aquilo que nos faz chorar em Central do Brasil. É também por causa dele que as lágrimas nos vêm.
Poderíamos acreditar, ingenuamente, que o motivo do trunfo do filme se deve pela “monumentalidade genial da obra”, pela sua originalidade, ou pela fuga do estereótipo brasileiro. Nada disso. Elencar qualquer um desses elementos enquanto chave de leitura da grandiosidade de Central do Brasil é negar a sua pós-modernidade, ou melhor, é relegá-lo a mais um filme do Brasil sobre o Brasil.
É preciso lembrar (ou acreditar) que o estado da arte, do cinema e em geral estava em crise — e ainda está, causada por esse momento de início de século, de uma maturação exacerbada da arte e sua exposição saturada. Parece-nos que tudo já foi feito. Acreditar numa elaboração formal-fílmica exemplar, ou seja, no aperfeiçoamento ideal das formas e técnicas de se fazer um filme, como indicador da grandiosidade de Salles, é negar toda uma trajetória da sétima arte e do pensamento filosófico ocidental. Seria negá-lo pertencente a nossa época e nosso lugar. Pior ainda, é crer que o filme é emocionante por simplesmente encenar um “Brasil verdadeiro”, numa boa narrativa quente e crua. Como a crítica gringa do The New York Times destacou na época de lançamento do filme, que a força de Salles como um documentarista é o que eleva o status de épico do filme. Estavam errados.
A crítica gringa tenta rotular o filme como se se limitasse a buscar o exótico e o regional, reforçando uma visão de pobreza e subdesenvolvimento da nossa arte e de nosso país. Quando, na realidade, é um particular muito íntimo. O sentimento e transformação crescente na narrativa de Josué e Dora é o que faz nos identificarmos paulatinamente enquanto assistimos o longa. Fazemos o filme de espelho, criamos os reflexos e chamamos de nós aquilo que o espelho inventa.
Também não devemos fisgar a mente e achar que de fato cria-se um sentimento sem nome. Quando aponto esse sentimento íntimo inominado, quero dizer que não posso crer que o motivo de Central do Brasil conquistar as lágrimas das salas de cinema, em sua época e hoje em dia, seja a elaboração da narrativa ou sua visualidade. Nada que se mantenha óbvio e disposto no projetor é capaz de explicar a complexidade do filme, senão nós mesmos. Algo surge lá de dentro. A recepção cria o filme. Nós inventamos o choro.
A nossa arbitrariedade é a nossa angústia — assim como a angústia é arbitrária. Desenvolvemos em nós mesmos nossos sofrimentos, avaliamos aquilo que valerá ou não o sofrer. Decalcamos nosso coração partido e disso tomamos o doído. Não posso, então, supor que só chora aquele que perdeu a mãe, a professora aposentada solitária ou aquele que teve um pai perdido pela cachaça no sertão do Nordeste. Pode até ser que boa parte da população brasileira, de fato, consiga se encaixar nesses quadros, mas sou convicto que não é isso que nos emociona.
Também não falo que o filme escapa o Brasil ou que deveria estar supostamente melhor rotulado do que como um “filme nacional”. Em Central do Brasil, nosso choro arbitrário supera o “sertãozão” e descortina uma condição do humano moderno: a melancolia e, consequentemente, a memória.
Minha maior preocupação ao escrever esse texto é a de não estragar a experiência do filme. Entretanto, não há muitas formas de escapar disso em um texto de crítica. Gostaria, então, de ressaltar a semiótica e proximidade que a ambientalidade das cenas possui com o aspecto religioso cristão. Passamos o filme inteiro com essa exposição espiralar da religiosidade, ora num primeiro plano, ora num plano mais atrás. No início, à margem do quadro e até um pouco fora dele, vemos o pastor “vizinho” do espaço onde Dora escreve cartas. Ele prega para quem se dispõe a ouvir, com imagens simples de Cristo em seu improvisado posto de trabalho. Após mais alguns minutos de filme, somos deslumbrados pela explosão de uma romaria no interior ardil e noturno do nordeste, crentes clamando e chorando com fé e gratidão. Ao final, aguardamos o retorno de Jesus, pai de Josué.
Não sou de muita fé, muito menos religioso. Não procuro fazer uma catequese do filme, muito pelo contrário. Busco o elemento, aparentemente banal e arbitrário, que suscite a nossa cultura e, ao mesmo tempo, expanda a universalidade humana. O cristianismo emerge, assim, como resposta: a promessa de um futuro pautado pela fé, pelo sacrifício e pela união. E notemos: o filme tem esse grande jargão, ele tenta nos conectar pelo Brasil. Mesmo que isso seja um Brasil, sua premissa é essa fragmentação da existência de vários brasis, que transborda para muito além de uma questão de nacionalidade. Há uma suposta dor comum que faz essa partilha subjetiva entre o filme e quem o assiste.
Parte da engenhosidade sentimental do filme é isso: percebemos que acompanhamos a história de uma Dora e um Josué, que não são o todo, e o filme assume isso. Como podemos ignorar todas as outras vidas que perpassam por nós? A chuva que caiu na roça; o homem que pode ser o homem mais feliz do mundo; o bêbado carioca, reminiscente do tesão abatido com a amada na cama de motel; a mulher de preso. Bom Jesus do Norte, Pernambuco. Muzambinho, Minas Gerais. São Paulo, São Paulo. Para meu pai, mãe, marido e “obrigado, menino Jesus”.
Esse repertório religioso, enquanto dispositivo artístico-estético, revela a nossa busca por algo que nos complete – um papel que a religião tenta desempenhar. Um pai, um lugar, um filho. Que, não coincidentemente, tange todas as cartas ditadas no filme. Nesse preâmbulo eloquente que Central do Brasil nos posiciona, somos compelidos a nos deparar com esse sentimento — incerto, difuso e fragmentado — , qual podemos identificar enquanto melancolia.
Ao pensar sobre a melancolia na modernidade, Julia Kristeva, em seu livro O Sol negro: depressão e melancolia (1987), retoma o texto de Freud, Luto e melancolia, reencenando o patológico para além de uma visão clínica. A melancolia, em Kristeva, é um luto sem inscrição, onde a ausência do nome ecoa no corpo como uma perda interminável. É uma tristeza causadora de uma busca, sem êxito, pela sua motivação ontológica. É por meio dessa busca que, no melancólico, a melancolia se expande por toda sua linguagem, tornando-se a aparente justificativa da existência do sujeito em sua dimensão subjetiva.
E a melancolia atravessa todo o filme, assim como faz com qualquer melancólico. E não bastando apenas estar na premissa do filme — afinal, Josué encara a perda de seu pai como a sua perda fundamental, ele que seria a chave de compreensão para a sua tristeza e o consolaria da morte de sua mãe. Para além disso, a melancolia se instaura firme na figura de Dora, sedimentada na mais emblemática frase do filme: “Tenho saudades do meu pai. Tenho saudades de tudo. Dora.” A irreal sensação reconhecível, por nós, de sentir saudade de tudo; é com essa fala que conquanto se perceba a saudade de tudo, é inegável que, então, não se pode sentir saudade de nada. Ao conceber essa locução melancólica enquanto possível, o mundo que compreendemos como realidade paira no ar.
A causa de todas as angústias surge, ao lado da promessa de felicidade para Dora e Josué. Ambas parecem estar ligadas ao retorno de uma figura ou algo que nunca foi real. O filme nos guia por uma promessa de plenitude, seja através do otimismo de Josué ou do comovente conformismo de Dora. O embate dos dois acontece num campo muito confortável para todos nós: a memória.
Josué constrói, para dar motivo a sua jornada, esse pai carpinteiro, que faz casa, mesa, cadeira e pião. Dora, em contrapartida, constrói esse pai cachaceiro. Constroem esse pai justamente porque a memória é sempre um gesto — um gesto profundamente melancólico, que busca homogeneizar o olhar enquanto, paradoxalmente, o fragmenta. A busca pelo todo no fragmento configura o oxímoro ideal do melancólico.
Assistimos, então, essa confusão angustiante, que inicia por nós mesmos. Enxergamos nossa identidade na esperança crescente de Josué, que floresce num solo tão inadequado. Também nos enxergamos no arrependimento de Dora. A melancolia é isso: sermos os dois, ao mesmo tempo. É no ponto final do filme que essa verdade não pode ser mais ocultada. Mesmo que ela justifique sua amargura no descuido do pai, ela teve que, na realidade, reprimir seu amor pela figura paterna. Desvencilhou-se da vaidade, gesto carregado de profunda carga emocional, pois agora pode contemplar os sonhos que jamais ousou sonhar, da mulher que nunca foi. Dora se permite rememorar todas as oportunidades que deixou escapar. Nas cartas jamais enviadas, carregadas de histórias não contadas, emerge o que permaneceu no fundo, silencioso, como sedimento esquecido. Agora, tudo vem à tona. Ela recria memórias das que nunca chegaram a existir. E, no fundo, não é isso o que todos fazemos?
Central do Brasil nos revela que tudo o que Dora consegue fazer é mirar o passado, presa ao ato de revisitar o que deixou para trás. Todo um grande filme para um pequeno sentimento de “e se?”.
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