“Nunca tinha me ocorrido que minha esposa era uma pessoa especial até ela adotar o estilo de vida vegetariano”
Com essas palavras, a escritora sul-coreana, Han Kang, inicia o romance A Vegetariana, lançado no Brasil em 2013 pela editora Devir e republicado pela Todavia em 2018. Na trama, Yeonghye, uma dona de casa que acorda antes do marido, passa suas roupas e prepara o café diariamente, sofre uma metamorfose profunda e gradual. Quando a noite chega, ela é atingida na intranquilidade de seu sono por pesadelos recorrentes e violentos, banhados em uma sanguinolência que contrasta ferozmente com sua pacata rotina. Assombrada por essas visões perturbadoras, a personagem decide jogar fora todo resíduo de proteína animal em sua geladeira, comunicando sua família sobre uma decisão súbita e, para eles, incompreensível: adotar uma dieta livre de carne.
O que poderia soar como uma simples decisão alimentar baseada na escolha da não violência resulta no desequilíbrio da ordem patriarcal duramente estabelecida em seu lar. Através de sua escolha, Yeonghye, constantemente silenciada ao longo de sua vida, encontra uma voz inédita ao contrariar as expectativas daqueles que a cercam, na tentativa de metamorfosear-se inteiramente em uma árvore.
Em diferentes focos narrativos que interpolam as visões de seu marido, na incompreensão dos motivos de suas decisões, seu cunhado, que a enxerga como objeto de desejo e tira proveito de suas fragilidades, e sua irmã, na busca por trazer Yeonghye de volta ao “normal”, o romance flui através de três partes: “A vegetariana”, “A mancha mongólica” e “Árvores em chamas”. Assim, a obra questiona o papel da mulher em uma sociedade dividida em papéis de gênero arbitrários e tece um paralelo com a realidade de diversas mulheres da Coreia do Sul. Os homens da história, aqui representados pelo pai, marido e cunhado de Yeonghye, enxergam-na meramente como uma posse, que deve seguir ordens e jamais questionar a comida que é (im)posta em seu prato. Seu “vegetarianismo” não serve apenas para proteger a vida dos animais ou cessar os pesadelos sangrentos, mas é fundamental na reafirmação de sua própria independência.
A obra é uma versão mais elaborada de um conto publicado nos anos 90 pela autora, intitulado O Fruto de Minha Mulher. Nele, uma mulher transforma-se de maneira literal em uma planta, chegando a ser regada em um vaso pelo marido no decurso da trama. Han Kang admitiu em entrevistas ter sido grandemente influenciada por uma frase do poeta modernista coreano, Yi-Sáng, em uma crítica ao colonialismo japonês: “Eu acredito que os humanos deveriam ser plantas”. Uma espécie de desobediência civil permeia o “tornar-se planta” presente em A Vegetariana, servindo como alegoria à resistência ante a ocupação japonesa e sob o controle familiar no qual Yeonghye é exposta.
A escritora foi homenageada, este ano, com o Prêmio Nobel de Literatura “pela sua intensa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”, e é concomitantemente a esses traumas que parece moldar a narrativa de sua obra, pois, mesmo contemporânea, figura ao lado de grandes clássicos da literatura sul-coreana e mundial, ao expor as fragilidades de um país marcado pela colonização.
“Em 1997, de repente, essa imagem apareceu na minha mente: um ser humano se transformando em uma planta” - Han Kang
Porém, mesmo com ares kafkianos, a transformação em A Vegetariana não busca atingir o tom surrealista presente no conto. Aqui, a transformação não foge da esfera do real, criando um efeito ainda mais perturbador. Em sua busca por atingir um estado vegetativo pleno – alimentando-se somente de luz e água – a protagonista abandona sua humanidade, a carne, na contemplação sincera de seu próprio alheamento. Em nenhum momento da narrativa Yeonghye define-se como uma vegetariana ou assume uma postura em prol da causa animal, mas todos ao seu redor parecem categorizá-la dessa forma, sem buscar compreender a verdadeira razão da mudança drástica em sua dieta.
É mais fácil evitar buscar as raízes e causas internas de seu novo modo de vida. É mais fácil, para sua família, tentar convertê-la novamente à “normalidade”, mesmo que através da força. O que se inicia com o abandono dos derivados animais evolui ao ponto de acreditar ser possível se alimentar somente por meio dos elementos essenciais para a fotossíntese. Seu interior e as tribulações que abrem caminho na mente da protagonista são inacessíveis a todos ao redor, como um fruto proibido, e é no casulo de sua vida que as mudanças tornam-se mais e mais evidentes.
A crueza, digna da carne que atormenta os sonhos de Yeonghye, marca a escrita de uma autora inimitável em sua originalidade. A prosa de Kang, única e visceral, é permeada, por vezes, de um lirismo erótico que reverbera em cenas de uma beleza descritiva assustadora. É através do desconforto em sua narrativa que denota-se como a sublimação corpórea da protagonista é sentida por todos os membros de sua família, permeando suas relações como as raízes de uma árvore.
Ganhadora do Man Booker International Prize de 2016 pelo romance e em 2018 por sua outra obra, O Livro Branco, Han Kang inventa e reinventa o humano de forma magistral, revertendo-o em suas origens até a antessala mental do que é existir. Em um retrato latente de sua desumanização, a protagonista reencontra a sensibilidade de poder trilhar suas próprias escolhas.
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