O debut diretorial de Zoë Kravitz promete muito e entrega um thriller sobre abuso que se perde nos clichês, mas ganha por ser bem feito.
No filme de estreia da diretora Zoë Kravitz, conhecida por seus papeis de atriz como mulher-gato em Batman (2022) e Robyn Brooks em High Fidelity (2020), somos convidados a adentrar na ilha de um bilionário tech, onde festas regadas à psicotrópicos e comidas caras servem de cortina entre um mundo real e outro idealizado. Na trama, a garçonete Frida, interpretada por Naomi Ackie, conhece Slater King, um homem rico e influente no mundo da tecnologia, que após ser denunciado por abuso de poder, busca restabelecer sua boa imagem. Junto da melhor amiga, Jess, Frida se deslumbra por um convite inusitado do bilionário – um período de férias na sua ilha privada – e é aí, então, que junto a outras mulheres, ambas se tornam peças em um jogo de esquecimento e poder.
Em entrevista, Zoë contou que o objetivo do seu primeiro filme do lado de cá das câmeras, enquanto diretora e roteirista, foi explorar e retomar o poder feminino. Ao longo da trama, em meio a relações desbalanceadas e que muito refletem a vida real, podemos notar que os dois pesos nessa balança são gradualmente substituídos, mesmo que de forma superficial, quando as convidadas da ilha percebem que o luxo e a luxúria oferecidos ali nada mais são do que uma pílula de esquecimento para uma verdade assombrosa, fantasiada de fruto proibido em um Jardim do Éden de ricaços.
Como thriller, “Pisque Duas Vezes” é um prato cheio para aqueles espectadores que querem ver um bom filme, mas que não se importam que o seu desfecho não seja tão complexo assim. Na ilha, Frida e Jess estão acompanhadas por outras convidadas em todos os momentos e convivem diariamente com os hóspedes masculinos de Slater, em um retiro repleto de ócio e drogas. O que se inicia como um cenário perfeito, das taças geladas de champagne aos menus mais refinados no jantar, pouco a pouco se desdobra em um quebra-cabeça que faz Frida questionar até que ponto a diversão pode cruzar os limites da sua autopreservação.
Logo quando chegam, as mulheres são recebidas pela secretária de Slater, que confisca seus celulares em prol de uma desconexão com o mundo para além da ilha. Agora, desligadas do mundo real, elas vestem roupas brancas e padronizadas, fornecidas pelos funcionários que ali residem, cada uma com uma flor nos cabelos. No armário do banheiro, Frida encontra um perfume dessa mesma flor, e o cheiro bom, assim como o ambiente aparentemente perfeito que a cerca, faz com que ela esqueça que, longe de Slater, jamais teria a chance de um momento como esse.
Por meio de enquadramentos fechados, momentos que são capturados perto demais e escolhas de planos de cena que são atípicos em filmes de suspense, a diretora aperta o gatilho em direção a quem assiste, nos atingindo com um desconforto indireto, como quem tem um presságio de que algo ruim está prestes a se revelar. A todo momento, é como se a ilha fosse um dos personagens também, testemunha de tudo que acontece. Por baixo do ouro das manhãs na piscina e da prata nas festas noturnas, outro desconforto é engatilhado dessa vez, um mais direto, porque em um determinado momento, o filme caminha até que a estranheza de antes se torne menos embaçada, vívida para aqueles que podem ver: nós e as mulheres na ilha, finalmente.
A partir daí, o filme se fragmenta em diversas cenas que nos deixam inquietos no lugar, uma hora porque tudo é pacato (e inalcançável) demais, outra hora porque percebemos que nada é tão perfeito assim. Com o decorrer dos dias, Frida passa a notar que há algo peculiar acontecendo por baixo dos panos, onde mais ninguém parece ver, apenas ela, e a atuação convincente de Naomi nos faz sentir na pele a confusão de sua cabeça. A roupa de Frida, que na noite anterior estava suja de comida, no outro dia, aparece limpa no corpo, como se nada nunca tivesse acontecido. Por debaixo das unhas, há sempre terra acumulada, mas ela não se lembra de fazer algo que sujasse suas mãos. É em um acontecimento chave para a reviravolta da trama e no encontro com uma senhora, que trabalha na ilha e parece já tê-la conhecido antes, que Frida finalmente acorda. Esse despertar é como se encarar em um espelho de fundo falso, quando de repente você descobre que tem alguém te olhando de volta, e esse alguém não é você.
A idolatria dos super-ricos e o desejo de ter e ser tudo aquilo que apenas o dinheiro é capaz de proporcionar pode colocar os que almejam essa falsa ideia de sucesso por mérito em um cárcere virtual, que aqui se traduz em uma prisão mental e física. Nas janelas da internet, observamos realidades perfeitas que pouco (ou quase nada) condizem com a realidade, e Kravitz é uma testemunha fiel desse mundo de alienação e privilégios, já que é filha de pais muito influentes na indústria do entretenimento. Enquanto atriz, ela se destaca na naturalidade dos seus papeis e tem muito mais a entregar do que apenas um rostinho bonito, o que se reitera no seu debut como diretora. À medida que os temas são desenvolvidos no roteiro, é quase impossível não questionar o quanto do que é exibido ali tangencia a realidade de uma indústria que cresceu e se perpetua no ódio que tem pelas mulheres.
Os conflitos de poder impostos pelo dinheiro são uma base sólida para a construção do filme e as consequências disso se traduzem não somente na soberania dos homens da trama, mas também no ódio intrínseco que eles sentem pelas mulheres. Ao escolher atores considerados “bonzinhos” aos olhos de Hollywood, Zoë nos expõe a uma situação ainda mais desconfortável, que faz paralelo ao que vivemos explicitamente. Channing Tatum, que interpreta Slater King, por exemplo, foi, na sua juventude, um galã de filmes adolescentes e é conhecido até hoje por seus papeis de bom moço. Agora, envolto em uma aura de dissimulado e predador, podemos enxergar um outro lado do ator, que pouco brilha no seu personagem quando comparado às mulheres do filme, e talvez propositalmente. Mesmo com pouco destaque, a figura de Slater é porta-voz de um perigo ainda maior, que está sempre à espreita, e se neutraliza no ambiente como o camaleão de uma das cenas. Porque a fachada de “homem bom” vai bem além de uma caricatura do cinema e da mesma forma que eles existem do outro lado da tela, as mulheres vítimas dessa falsa bondade também.
Quando a diretora tece sua história diante do dinheiro e da misoginia, ela faz outra alusão à vivências de mulheres que não são fictícias, Fridas que existem. Segundo ela, “eu quis explorar o quão absurdo é pedir que as mulheres esqueçam e finjam e sorriam mesmo sentindo dor; falar com nossos olhos porque não podemos falar em voz alta”, e os inúmeros casos de abusos na indústria do entretenimento, envolvendo mulheres e homens de muito poder aquisitivo, nos fazem refletir sobre a importância de “Pisque Duas Vezes” enquanto um recorte da nossa sociedade. À luz de casos como o do magnata americano, Jeffrey Epstein, que traficava sexualmente jovens mulheres para sua ilha privada no Caribe e as abusava junto de amigos influentes do ramo, ou da acusação mais recente de abuso sexual contra o rapper e produtor musical, P. Diddy, que oferecia festas badaladas para centenas de famosos em sua casa, onde mulheres também eram expostas a situações de abuso, percebemos que a narrativa de Zoë Kravitz é muito atual.
Ainda que ela trace linhas sobre temas tão conturbados, o seu discurso diante deles é satisfatório, mas não consegue fugir do raso. Os elementos de mistério que vemos correr ao longo da história são destrinchados de forma competente à medida que vão sendo revelados, mas a tensão que se ergue nos dois primeiros atos – junto à estranheza dos acontecimentos e os fragmentos de memória de Frida – logo se perde no 3° ato, de forma apressada e brusca. Essa mudança no tom de voz do filme soa literal demais, como se Kravitz precisasse mastigar as simbologias do que foi dito até aquele momento para um público específico que está assistindo, e isso nos tira da atmosfera cultivada até ali, já que a história passa a se afundar em clichês do gênero, que já não surpreendem mais depois de tantas repetições. A desconfiança que o próprio roteiro tem com seus espectadores, para mim, foi uma quebra de expectativa nem tão grande, mas que mesmo assim afetou a experiência final, e o plot twist dos últimos minutos não tem a força que acredita ter, deixando um gosto de “mais do mesmo” na boca.
Diferente de outros filmes do gênero de suspense social, como os títulos Corra! (2017) e Nós (2019) do renomado Jordan Peele ou O Menu (2022), estrelado por Anya Taylor-Joy, que também abordam thrillers de estranheza e críticas à sociedade, a diretora preferiu se manter na segurança de um filme que promete algo e entrega apenas o conforto daquilo que prometeu. Talvez se manter nessa linha tênue entre não se arriscar e oferecer uma boa história que te faz refletir tenha sido um desafio para Zoë Kravitz, que no fim preferiu se manter no chão firme.
Apesar disso, “Pisque Duas Vezes” é um bom filme para se ver sozinho ou com amigos, porque traz pistas ao longo do roteiro que conseguem te prender até o fim, em uma busca para desvendar o que está acontecendo ali antes das personagens, assim como a fotografia é bem feita, refletindo o cenário paradisíaco e como tal beleza pode se tornar claustrofóbica em pouco tempo. Talvez você termine pensando "já vi esse filme em algum lugar", e ele soa mesmo como um compilado de outras obras já feitas sobre suspense com teor social. Seus elementos originais, antes seguidos até o fim e não interrompidos pela rota de segurança que a diretora resolveu tomar, poderiam ter dado vida à um conjunto completamente inovador. Quando acaba, não é um filme memorável, entretanto isso não o faz menos agradável nem um desperdício de narrativa. Pelo contrário, mesmo no desconforto que uma ilha particular repleta de homens ricos oferece a qualquer mulher que assiste, o filme consegue entregar uma experiência completa em si mesma. A estreia de Zoë Kravitz na direção se finda com pouca sutileza, mas vale a pena conferir pela ideia e para assisti-la tomando posse de um roteiro promissor, em uma surpresa atraente e uma história interessante sobre poder feminino.
Nota: 4/5
A premissa de Pisque Duas Vezes abre espaço para discussões instigantes sobre poder, gênero e a idolatria dos super-ricos, temas extremamente relevantes nos dias de hoje. A ideia de colocar personagens femininas em um ambiente que, à primeira vista, parece um "paraíso", mas que gradualmente revela-se uma armadilha repleta de segredos, é uma metáfora poderosa sobre como o poder e o controle podem ser disfarçados por glamour e promessas de sucesso. Essa narrativa também pode ser vista como uma crítica a qualquer estrutura de poder que utiliza o luxo, o conforto ou distrações para ocultar injustiças, desigualdades ou abusos. Isso pode se aplicar a diversos contextos, desde corporações que escondem práticas antiéticas atrás de uma fachada sedutora, até relações pessoais…
juju arrasou mt nessa crítica! ja quero assistir! 😮
Queria saber escrever bonitinho mas caramba!!!! Agora tenho que assistir. Vocês são os melhores <3