O k-pop é um estilo musical que vem crescendo exponencialmente nos últimos anos e criando uma legião de fãs. Hoje, a Guilhotina vai te levar para conhecer um pouco mais sobre esse gênero musical, ao traçar um paralelo entre ele, o capitalismo e o fenômeno das relações parassociais.
Parassocialidade é um tipo de relação mantida entre figuras midiáticas e públicas, caracterizada pela falsa sensação de proximidade com uma celebridade. Mais do que acompanhar e admirar, também é investir nesse relacionamento, mesmo não sendo algo concreto, e dedicar, além do próprio tempo, valores monetários para acompanhar as novidades dos chamados idols. Todos esses recursos investidos favorecem a criação de uma sensação ilusória de intimidade e alimenta a relação interpessoal entre fã e ídolo. Nesse contexto, um dos gêneros que mais é perpassado por esse tipo de relação é o k-pop, devido à grande exposição contínua dos seus artistas, característica que mantém o consumo massivo dessa indústria.
Consagrado como um estilo musical da Coreia do Sul, o k-pop carrega, na etimologia de seu nome, a abreviação da palavra “korean pop” (em tradução livre: “pop coreano”). Em seus ritmos, vemos a mistura de vários gêneros musicais, como hip-hop, R&B e principalmente pop. Mundialmente conhecido, com seu boom no período de quarentena da Covid-19, o gênero tem conquistado cada vez mais fãs e segue lotando estádios a nível global. Em 2020, a plataforma de música, Spotify, divulgou que o número de ouvintes do gênero aumentou em cerca de 1800% entre 2014 e 2020. Ainda segundo a pesquisa, descobriu-se que o Brasil é o quinto país que mais escuta k-pop no mundo.
Na busca de entender um pouco mais sobre esse mundo, a Guilhotina entrevistou algumas pessoas inseridas na comunidade do k-pop, a fim de coletar experiências pessoais e visões desses fãs diante dos contatos parassociais.
A primeira entrevistada foi Karolainy, fã de BTS, grupo sul coreano muito proeminente no cenário global. Ela citou que, muitas vezes, a conexão pessoal é confundida com admiração. Segundo Karolainy, a partir do momento em que ela e os demais fãs entram em contato com o idol, “a gente pensa que vai flutuar, que estamos apaixonados pela pessoa, mas, na verdade, a gente tá apaixonado pela arte que ela está transmitindo ali."
Ela ainda aponta: “o sentimento que tenho em relação aos artistas é de harmonia, felicidade e paixão. Se alguém perguntar o que é BTS para mim, eu diria que eles são muito mais que um simples grupo que canta músicas sobre se amar e sobre passar por momentos difíceis. É como se eles fossem aquela pessoa que a gente procura, que a gente queria que falasse que vai ficar tudo bem. Aquela pessoa que traz um certo acolhimento, sabe?”
Embora essa interação possa trazer benefícios particulares ao fã, da mesma forma, é capaz de entrelaçar-se a alguns problemas, como alerta o psicólogo e professor, Rodrigo Vieira. Perguntado sobre quais os riscos associados a esse relacionamento, ele cita: “as relações parassociais podem até criar uma sensação de conexão e pertencimento, mas também trazem vários riscos emocionais e psicológicos. Entre os principais problemas estão a ansiedade, depressão e o processo de despersonalização, uma idealização exagerada, o que pode levar a expectativas irreais sob a figura pública”, o que pode, segundo ele, “gerar uma dependência emocional, em que a pessoa começa a se sentir cada vez mais isolada socialmente, buscando constantemente a atenção ou aprovação dessas figuras.”
A falsa proximidade produzida entre fãs e artistas é também uma estratégia da indústria musical, que visa o lucro financeiro diante de tais emoções e submete seus artistas a posição de objetos moldados para o consumo de uma relação que extrapola a arte. Propagandas, álbuns e itens que remetem aos artistas, tudo isso incentiva o mercado musical e alimenta as empresas responsáveis pelo gerenciamento dos artistas, de uma forma que as músicas se tornam apenas um meio para o alcance de algo bem maior do que apenas letras e canções.
Segundo uma pesquisa realizada pela Monks, empresa de marketing digital e tecnologia, os fãs brasileiros gastam, em média, 200 reais por mês com seus ídolos e de acordo com o IBGE, o valor é quase cinco vezes maior que o gasto mensal com atividades culturais no próprio país, que só chega a 40 reais por mês. Os dados da pesquisa da Monks e da página @floatvibes apontam ainda que cerca de 38% da população do país se considera como parte de um fandom ou, para os mais velhos, fã clube. Com o total de entrevistados, 71% das pessoas veem os fãs brasileiros como “os mais dedicados da internet”.
Na ótica das empresas, tal dedicação surge como uma oportunidade de investimento para aumentar o lucro perante os artistas e explorar melhor potências comerciais. Nesse sentido, 53% dos entrevistados para a nossa matéria veem esse aspecto como “fundamental na manutenção da dedicação como fã”. Sobre isso, a Gui perguntou aos fãs a respeito dos seus gastos financeiros para obtenção de itens associados aos seus artistas favoritos. Katherine, uma das entrevistadas, citou que atualmente não cogita tanto essa questão, mas “antigamente, principalmente quando eu era adolescente, eu era louca para ter um álbum, por exemplo, do EXO (..) Não vou mentir que já comprei e eu acho que compraria novamente, coisas feitas de fã para fã”.
Já Karolainy, conta: “eu sempre tento tá ali comprando algo que me lembre deles. Sinto que o retorno que eles terão é como se fosse um investimento na minha felicidade de mostrar que os meus ídolos estão ali comigo.”
Por fim, o terceiro entrevistado, Christopher, respondeu: “eu já gastei com pequenas coisas. Acho que com cards, photocards (pequenas fotos comercializáveis dos ídolos). E não é algo que eu gaste diariamente. Eu acredito que ser fã não significa que você tem que ter todos os objetos, todas as coisas."
Outro fator vastamente observado no fenômeno histórico do K-pop está na representação dos idols na mídia e o papel que o meio midiático detém nessa perspectiva. A respeito disso, para Katherine, “a questão da representação do ídolo na rede social influencia muito na percepção de qualquer pessoa, inclusive na minha (...)” Segundo ela, muitas vezes, o meio midiático, associado à indústria, cria uma falsa percepção de que os artistas não são sequer humanos. Para Katherine, a influência das redes sociais, sobretudo, “tampa nossos olhos”; “a gente vê tudo bonito e alegre, mas não vemos por trás daquele sorriso, se existe alguma tristeza profunda".
Essa perspectiva de distanciamento do que enxergamos como humanidade está associada ao próprio desenvolvimento do capitalismo e a sucessiva perda de identidade que ele traz, em detrimento da indústria. Paulo Leminski, escritor da década de 70, em sua obra Inutensílio, traz uma breve reflexão, por meio de uma crônica, acerca dessa questão, afirmando que dentro da sistemática capitalista tudo se torna produto e o próprio sentido – a essência, a arte e, nesse caso, a vida – vai se convertendo em algo inútil, em um “inutensílio”. Os idols, nessa esfera capitalista, ganham uma nova roupagem, apenas inseridos em uma produção de larga escala, uma fábrica de “utilidades”, convertidos em produto.
Para Christopher, há dois lados para a representação desses artistas na mídia: “Eu acredito que a mídia pode ser tanto beneficente como prejudicial, pois ela pode também acabar com a reputação e a carreira do artista através da imagem que eles querem passar. Em questão de polêmica, com o Suga (membro do BTS) sobre o patinete (...), a mídia tornou isso algo de muito alarde, tanto que está sendo discutido até hoje. Muitas pessoas pedem a expulsão dele do grupo, dizendo que cometeu um ato ruim, então é algo que pode ser muito perigoso."
A polêmica mencionada por ele foi noticiada pela imprensa sul coreana e ocorreu em agosto desse ano. No episódio, o artista foi autuado por estar dirigindo um patinete elétrico sob efeito de álcool e ter se desequilibrado em frente à própria casa. O cantor teve que pagar uma multa e também teve sua habilitação suspensa por violar as leis de trânsito do país. De acordo com a delegacia de polícia, o teste de bafômetro confirmou alto índice de álcool no organismo do cantor e que estava muito além do limite permitido por lei. entretanto, nenhuma pessoa foi ferida na situação. A polêmica repercutiu em todos os veículos e mais ainda entre os fãs de k-pop, principalmente após o pedido de desculpas que foi emitido pelo cantor e pela empresa da qual faz parte, BigHit Entertainment. Diante do ocorrido, muitas pessoas da comunidade se irritaram, algumas pela conduta do cantor e outras pela forma como o momento foi retratado no país, o que apenas levanta mais questões sobre a comercialização da imagem desses artistas.
Por outro lado, Karolainy acredita que: “Eu acho que se eu entrasse hoje no fandom, talvez a mídia influenciasse um pouco na minha percepção. Tá rolando muitas polêmicas envolvendo o nome dos meninos, inclusive envolvendo o Suga. Eu acho que se eu tivesse prestes a entrar no fandom e não conhecesse ou pesquisasse nada, acreditaria em tudo que a mídia fala, tanto nas coisas positivas quanto negativas."
O fator midiático não está somente interligado com os ídolos em si, mas com todo o complexo psicológico gerado nos fãs, a partir da representação e da influência exercida pelas redes sociais, por exemplo. Ainda segundo o psicólogo Rodrigo Vieira, “a sensação de inadequação pode se intensificar, à medida que a pessoa compara sua vida com a imagem idealizada que vê nas redes sociais”. O próprio interesse pelas interações parassociais é algo que vem crescendo sucessivamente com o aumento das mídias digitais e das redes sociais, que, de acordo com ele, oferecerem “novas formas de conexão, inclusive a de idealização, entre fãs e figuras públicas."
Contudo, resta uma questão central: essas relações sempre existiram ou são fruto do nosso tempo? Sobre isso, o psicólogo comentou: “as relações parassociais, embora mais intensas e visíveis hoje em dia, não são algo completamente novo. Elas têm origem na época da mídia de massa, mas com o tempo, especialmente com o surgimento das redes sociais, a forma e a abrangência dessas relações mudaram bastante. Um bom exemplo disso são as celebridades Hollywoodianas e o antigo poder da TV aberta no Brasil."
Após a conversa com Karolainy, Katherine e Christopher, é impossível não notar que o k-pop se abrange para muito além do que apenas um gênero musical; ele é um reflexo de um fenômeno cultural que mescla cultura, consumo e identidade. A relação entre os fãs e seus ídolos vai além da música, envolvendo um vínculo psicológico profundo, que, por vezes, pode ser tanto benéfico quanto prejudicial. A crescente influência midiática diante dessas comunidades de fãs e a estratégia de mercado da indústria do k-pop estão redefinindo o conceito de fandom e dessas interações que datam de muito tempo. Na mesma medida, o Brasil segue sendo um dos maiores consumidores desse gênero e os fãs continuam a nutrir sua paixão por meio de cada single, álbum e produto exclusivo, demonstrando o quão proeminente e global é o k-pop enquanto fenômeno histórico, cultural, comercial e identitário.
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