No ritmo do Charme: o baile que transforma as noites do Recife
- Mikaely Pedroso e Antony Eduardo
- 16 de out. de 2024
- 7 min de leitura
O baile charme nasceu em 1980, no Rio de Janeiro, ganhando força na zona norte da cidade. O movimento foi influenciado por diversos ritmos como funk, soul e R&B. O estilo de música que dominava muitos bailes, como o de Madureira, era caracterizado pelas batidas suaves acompanhadas de letras românticas e groovy que marcaram época.
O termo foi criado pelo DJ Corello, fazendo referência ao clima dessas festas, que misturava música e dança de maneira harmônica, com coreografias sincronizadas. O Clube Renascença e o Viaduto de Madureira tornaram-se rapidamente símbolos do evento, reunindo multidões que encontravam nos bailes um espaço para expressar sua identidade cultural e social.

Os bailes charme não ficaram restritos ao Rio de Janeiro. Com o passar dos anos, o "charme" evoluiu, mantendo suas raízes na cultura negra e se expandindo para outras regiões do Brasil, como São Paulo, Belo Horizonte e, especialmente, Recife. Essas cidades abraçaram a festa e a adaptaram às suas próprias realidades culturais. O baile charme recifense tornou-se um espaço de celebração da cultura afrodescendente, oferecendo um ambiente de resistência e identidade para a juventude negra da cidade.
Relevância Social e Cultural:
O "Baile Charme Rec" chegou nos bairros pernambucanos em 12 de maio de 2022, trazendo consigo ares de uma renovação cultural necessária e bem vinda. Agora para além do passinho, frevo, afoxé, maracatu, coco, reggae, capoeira e várias outras manifestações culturais, o Charme embala um capítulo novo e repaginado na cena noturna recifense. E apesar de não ter surgido na capital pernambucana, o evento vem, desde então, trazendo consigo um grande impacto acerca do debate racial na esfera cultural do Recife. Desde suas primeiras edições, vem para nos fazer refletir sobre o papel que a cultura exerce na percepção de conflitos sociais, mas também nos ajuda a enxergar formas de resistência em eventos que são simbólicos para a população negra.
Com o Charme, foi criado um espaço de comemoração e apreciação da cultura preta, onde quem participa tem a oportunidade de encontrar no evento um ambiente livre de preconceitos e que possui como um dos seus pilares principais a valorização da diversidade de manifestações culturais afro-brasileiras. A influência desse movimento foi fundamental para criar uma estética única, presente nas danças, na moda e nas interações sociais, consolidando a festa como um movimento cultural de grande relevância.
Diante disso, a Guilhotina conversou com os dois fundadores do evento, Márcio e Rebeka, para conhecer mais sobre a história por trás do Baile Charme Rec.
Ritmos e Raízes: O Baile Pelos Olhos de Seus Criadores
Márcio Felipe (@marcianof_) e Rebeka Barbalho, cofundadores do Baile Charme Rec, em entrevista com a Guilhotina, explicaram que a ideia do evento surgiu de uma série de coincidências e encontros, incluindo seus interesses pela dança e suas trocas, já que ambos atuam nessa área. Márcio nunca havia pensado em realizar um evento semelhante ao Charme em Recife, até que amigos sugeriram a ideia depois de uma experiência espontânea de dança em uma festa.

Rebeka destaca que a produção de eventos apresenta desafios únicos e a sua motivação para trazer o Baile Charme para Recife surgiu da vontade de trazer algo novo para a cidade, misturando ritmos e estilos que fugiam do que a cena local estava acostumada. Embora se inspirem nos bailes charmes do Rio de Janeiro, o charme recifense é único, refletindo a multiculturalidade da cidade.
“Acho que o que mais impulsionou a gente foi isso de trazer algo novo pra Recife. É uma concentração de outros ritmos, diferente do que Recife estava acostumada. É um charme recifense, muito distinto do que acontece por aí." - Rebeka Barbalho (@rebekabarbalho)
No primeiro evento, organizado sem grandes expectativas, em uma quinta-feira, para minimizar riscos, enfrentaram desafios como a chuva no início da festa. Mesmo assim, a dupla conseguiu engajar o público e o evento foi um sucesso, o que se perdura até hoje.
A curadoria musical é um dos pilares do Baile Charme Rec. Márcio destaca a importância da colaboração de DJs experientes, como DJ Fino, que apoiou o projeto desde o começo, e DJ Antropogata, que também incentivou o evento. O Charme tem crescido, e o desejo de realizar uma festa que exalte a beleza e a pluralidade cultural do povo é uma grande motivação para ambos. A experiência de celebrar em um espaço que valoriza a ancestralidade e a história é motivo de orgulho para os fundadores, assim como o entusiasmo por transformar essa ideia em realidade é contagiante e proporciona um espaço vibrante para a comunidade negra recifense.
Música e Dança:

Na década de 1990, o glamour do baile charme tornou-se ainda mais proeminente com a explosão de sucessos de James Brown, Stevie Wonder e artistas internacionais como Earth, Wind & Fire, Luther Vandross, Kool & The Gang, Barry White e muitos outros. A escolha do set não apenas define a atmosfera do evento, mas também estabelece uma conexão emocional com o público, promovendo uma experiência única.
A dança coreografada é uma parte essencial do baile, incentivando a interação e a participação coletiva. As coreografias proporcionam um espaço para os participantes se expressarem livremente e se conectarem uns com os outros, aumentando o senso de comunidade e, ao mesmo tempo, transformando a dança em uma forma de arte partilhada, na qual todos desempenham o papel de protagonistas.
Depoimentos e Experiências Pessoais:
O Baile Charme Rec deixou de ser só um simples evento e passou a ser uma experiência de fortalecimento coletivo, sendo protagonizado por pessoas pretas que ocupam esse espaço com orgulho. A Guilhotina teve uma troca de ideias com participantes, DJs e MCs que vivenciam intensamente a energia do charme recifense, refletindo sobre o impacto que o evento exerce tanto em suas vidas pessoais quanto no contexto da comunidade.
Isa Virgínia - Produtora Audiovisual (@isavirgnia)

“Trabalho com storymaking há dois anos, mas essa foi minha primeira oportunidade de cobrir um evento produzido e protagonizado por pessoas negras. Senti uma energia acolhedora e leve, uma sensação de estar em casa. Pra onde eu olhava, avistava pessoas lindas e talentosas se divertindo e trabalhando. E o melhor: parecidas comigo. Foi também minha primeira experiência no baile charme, sempre quis ir a lazer, mas trabalho aos fins de semana e não consigo.
Então vi como uma sorte essa oportunidade de estar no mesmo evento que o Baile. Recarregou energias criativas e de autoestima. Em dois anos trabalhando no audiovisual, pouquíssimas vezes vi colegas e pessoas negras em condição de lazer. Fortaleceu e inspirou demais. Saí com minha noção de comunidade fortalecida, que, se não for cultivada, se perde no meio da rotina e enfraquece nossa existência.”
Lucas do Carmo (Docarmmo) - DJ do Baile Charme (@lucasdocarmmo)
“Bom, sendo direto, a minha experiência sendo o DJ do Baile Charme Rec foi incrível! Senti um certo peso e responsabilidade, pois, como frequentador, dessa vez eu seria quem comandaria a pista, a energia e o clima do ambiente. Tive que me preparar para pensar que tipo de sensação queria transmitir. Construí um set 100% direcionado a músicas que tocam no Baile Charme de Madureira, no Rio, que eu também frequentei. Queria mostrar o que aprendi lá e o que enxergo como essência do Baile Charme.

Além disso, quis passar para a galera que o baile é sobre sentir, se permitir, ouvir a música, não apenas performar danças ou coreografias. No final, toquei músicas mais melódicas, menos ritmadas, e o feedback foi ótimo! A galera curtiu, e isso ecoou nas redes sociais.
Me senti honrado, já que sou frequentador do Baile Charme Recife desde a primeira edição. É uma festa que mudou minha percepção de rolês recifenses e também, como jovem negro, me apresentou que há sim espaços seguros para nós, pessoas pretas, frequentarmos. Finalmente me enxerguei na noite de Recife e entendi que nós só precisamos que esses espaços sejam apresentados, pois estaremos lá os ocupando. Se hoje eu sou DJ, é graças ao Baile Charme Recife.”
Felipe Araujo - MC do Baile Charme (@feslipe.a)
“Como MC do Baile Charme, sou suspeito para falar. Comecei frequentando o baile logo que cheguei em Recife. Não tinha muitos amigos, e a maioria dos amigos que fiz foi no Baile Charme. É uma galera preta, e a gente tem poucas festas assim em Recife, onde a gente encontra a população negra, mas num movimento de aquilombamento mesmo, sabe? De se conhecer, de todo mundo ali se identificar no seu território, de se ver, de se olhar, de falar ‘caramba tem mais pessoas negras aqui’ e também a questão amorosa, afetiva, acaba sendo bacana a questão de troca da gente pra gente.
Quando comecei nos bailes, não sabia dançar. Meu primeiro baile foi o Black Bom, no Rio. Quando descobri que tinha aqui em Recife, fui e nunca mais parei de ir. Hoje, sendo MC do Baile Charme, é um prazer muito grande animar e agitar a galera. É lindo demais! Eu adoro o Baile Charme, é uma festa que Recife precisava e principalmente as pessoas pretas precisavam, já que infelizmente nem todos os espaços que a gente frequenta, muitas vezes são espaços que não vão ser tão acolhedores com a gente.

Aqui, a gente encontra um espaço seguro. Nem todos os lugares que frequentamos são acolhedores para nós, pessoas negras, mas o Charme é. Me sinto muito bem quando estou lá, trocando ideia e animando o público. Sempre é muito bom.”
Esses relatos mostram o quanto o Baile Charme Rec vai muito além da pista de dança. O evento acabou se tornando um importante espaço de expressão e de fortalecimento de laços, onde a representatividade e a autoestima são trabalhadas a cada set. É um ponto de trocas afetivas e reconexão para a comunidade preta de Recife, para os DJs, MCs e frequentadores, o Charme passou a ser não só uma festa mas uma manifestação de pertencimento.
No ar: Molly Charme!
O festival "No Ar Coquetel Molotov" — Molly, para os mais íntimos — terá uma participação especial na line-up deste ano: o Baile Charme Rec, com o DJ Corello, pioneiro do baile charme no Brasil.
O encontro desses dois eventos não é apenas uma adição à programação, mas reforça a importância de iniciativas que dão visibilidade à diversidade cultural e contribuem para a criação de um espaço onde o diálogo entre diferentes expressões artísticas seja possível. A inclusão do baile no line-up do festival representa mais que uma simples festa: é um símbolo da celebração da cultura afro-brasileira.
Graças à curadoria da icônica Idlibra, o palco Kamikaze vai ferver com o charme recifense, que chegou para agregar e reafirmar a diversidade que tanto caracteriza a nossa Veneza Brasileira.
❤️🕺🏻🪩