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Jéssica Oliveira

Como "Carmilla" influenciou a representação gótica na mídia

“O amor tem seus sacrifícios. E não há sacrifício sem sangue.”



Vampira com as presas de fora olhando para a câmera, do filme The Vampire Lovers
The Vampire Lovers (1970)

Carmilla, a vampira de Karnstein é um livro do escritor irlandês, Sheridan Le Fanu. Publicado em 1872, a obra é um expoente significativo da literatura gótica e um marco na representação do horror, sendo protagonizada por aquela que é considerada uma das primeiras vampiras da literatura mundial. A história acompanha os dias em que a jovem Laura passa na companhia de uma mulher misteriosa, chamada Carmilla, e os eventos estranhos que se sucedem após a chegada dela. O livro, inicialmente publicado como um folhetim na categoria de contos de terror, encontrou forte inspiração em O Vampiro, de John Polidori, escrito no mesmo contexto fértil para o horror do pioneiro da ficção científica, Frankenstein, de Mary Shelley. 


Os eventos se desenvolvem a partir da visão de Laura, que vive reclusa com seu pai, um inglês que já foi um soldado do exército austríaco, em um schloss (castelos ou grandes casas de campo, em alemão) na Estíria. Além deles, vivem também as governantas e acompanhantes de Laura, Madame Perrodon e Mademoiselle de LaFontaine, as únicas companhias que possui além do pai. Sua vivência nesse ambiente é marcada por eventos estranhos e misteriosos, que se intensificam após uma suposta alucinação, ocorrida na infância, na qual uma mulher a visitava durante a noite e arrastava-se para sua cama, a fim de acalmá-la de um pesadelo. O que parecia apenas um delírio se torna cada vez mais crível quando Laura sente uma fina perfuração em seu peito. E desde então, a jovem cresce assustada, sempre relembrando o ocorrido com profundo temor. 


Em seu aniversário de 19 anos, ela aguarda ansiosamente pela visita da sobrinha de um velho amigo do seu pai, e a simples ideia de ter uma companhia da sua idade lhe é encantadora. No entanto, um terrível incidente faz com que a visita seja cancelada e, desolada, Laura caminha pelo castelo, onde um estranho episódio se desdobra quando uma mulher pede ao pai de Laura para tomar conta de sua filha, uma moça pálida e de saúde frágil, para que a mãe possa, assim, realizar uma pequena viagem de urgência a qual a filha adoentada não poderia acompanhar. O nome da jovem dama é Carmilla, e Laura, eufórica com a ideia de fazer uma nova amiga, insiste que seu pai a deixe ficar sob seus cuidados. 


O comportamento peculiar de Carmilla causa certa intriga em contraste com a habitual rotina do schloss. Descrita como uma mulher de aparência bela, lânguida e encantadora, a hóspede nada reveladora aparenta esconder estranhos segredos sobre seu passado –  que sua mãe pediu que mantivesse oculto –, e rapidamente cria uma relação de afeição por Laura. Durante a estadia de Carmilla, eventos excêntricos se sucedem, envolvendo uma série de mortes súbitas de mulheres da região, o que deixa todos alarmados e temerosos com uma possível epidemia. Acontecimentos posteriores, porém, indicam que esses súbitos incidentes podem ter ligação com a presença de um ser maligno.


Apesar da presença de uma pequena barreira linguística devido a época de lançamento da obra, o envolvimento com a história e seus personagens não é perdido, e os detalhes ofertados nas descrições de LeFanu ajudam a imaginação a fluir lindamente na ponderação do cenário em que a trama está inserida. A ambientação do livro desperta a curiosidade e faz lembrar antigas lendas e filmes de horror que se passam durante o período gótico, prendendo o leitor a descobrir mais sobre esse universo de castelos, vilas e, claro, vampiros. Diante da maneira como o autor trabalha impecavelmente as descrições dos sentimentos de Laura, sentimos toda a agonia, confusão, medo e aceitação da personagem, enquanto vemos Carmilla sob sua ótica e ficamos igualmente fascinados pela mulher. 


Escrito como uma carta íntima de Laura, o livro relata os acontecimentos com um esmero quase cênico, adicionando elementos ao relato que beiram o teatral. Assim, nos conectamos com a personagem e sentimos todas aquelas emoções descritas juntos. O mistério sobre Carmilla ser ou não uma vampira perdura até metade do livro, semeando a dúvida ao longo da narrativa através de episódios estranhos e visões, em que vampiros são um elemento implícito inicialmente e cabe ao leitor descobrir a possível existência deles junto com os personagens. 


Foto: divulgação

Vampiros se tornaram um símbolo na literatura gótica e do gênero de horror, assim como uma grande referência dentro do estilo da subcultura gótica nos últimos tempos, seja por causa da estética ou pelas histórias que envolvem esses seres. No início da década de 1980, o movimento post-punk estabeleceu o goticismo através de grupos musicais que abordavam temas e músicas mais sombrias, com características incorporadas ao vampirismo, letras melancólicas e estilos mais obscuros. Carmilla possui uma identidade que se encaixa no estilo gótico, e por isso, se tornou um grande símbolo dentro dessa subcultura, sendo usada como referência para estilos em visuais obscuros e enigmáticos.


A dualidade de Carmilla entre o horror e a sensualidade é um dos pontos-chave. Carmilla foi a pioneira ao incorporar a visão de que os vampiros são medonhos na mesma medida em que são sensuais e enigmáticos; são vistos como monstros, mas sempre há uma aura de poder rodeando-os. Vemos isso em Drácula, o imponente e consagrado rei dos vampiros, mas tudo começou com a obra de Sheridan LeFanu.


Por que o grande interesse de Carmila por Laura? Esse é um dos maiores questionamentos do livro. Sem dúvidas, podemos enxergar o crescimento de uma relação amorosa construída entre elas, que parte da afeição que Carmilla sente pela jovem. Mesmo que seja descrito implicitamente, os sentimentos que ambas possuem vão além de um carinho amigável, evoluindo em uma paixão avassaladora a ponto de Carmilla desejar que a garota se junte a ela na imortalidade. 


No decorrer da trama, vemos que Laura não é a primeira garota por quem Carmilla se interessa. Esse fascínio intenso que os vampiros possuem por suas ditas “presas” vai além dos limites impostos pelo gênero e isso se manteve presente nas obras posteriores (literárias ou cinematográficas) sobre tais criaturas. Logo, tornou-se parte da releitura moderna do mito, com os vampiros sendo vistos como seres de imensa paixão e sensualidade, e serve como metáfora para a vivência LGBTQIA+ em incontáveis mídias. Carmilla, então, desponta não somente como um marco na representação dessas criaturas que vivem além do tempo, mas também como pioneiro na representação do homoerotismo feminino. 


Sheridan Le Fanu, “o pai das histórias de fantasmas inglesas”, é considerado uma das figuras mais importantes da ficção gótica. A leitura do mito do vampiro aqui é simplesmente extraordinária, a forma como explica a existência desses seres no livro quase nos faz acreditar que um ser desse tipo pode existir. É como se estivéssemos montando um quebra-cabeça junto dos personagens, desvendando, junto deles, esse mistério. Elogios não faltam sobre a maneira com que Sheridan conduz seus contos e romances e como seu uso dos elementos sobrenaturais são convincentes ao público, aproveitando a caracterização e descrição das cenas de modo tão perspicaz que continua a impactar leitores, mesmo com o passar das gerações. Apesar de ter surgido durante o período tardio do romance literário, inovou e mudou o cenário gótico em tal gênero. Mais à frente, a paixão pelo macabro o fez criar uma de suas obras mais aclamadas, In a Glass Darky, uma coletânea de histórias de terror que tem, novamente, os vampiros como protagonistas. 


Foto: divulgação

Carmilla ganhou algumas adaptações cinematográficas e influenciou muitas outras com o passar dos anos. Como exemplo, temos o filme The Vampire Lovers (1970), dirigido por Roy Ward Baker e categorizado como um terror erótico, cuja sinopse destoa um pouco da obra original em sua proposta: “No século 19, a vampira Carmilla, a última descendente da família Karnstein, reaparece em busca de mulheres para satisfazer seu apetite voraz por sangue”; mesmo que não siga à risca o enredo do livro, ainda notamos que permeia a sensualidade e os sentimentos obsessivos de Carmilla por Laura, tal qual descrito por Le Fanu. 


O filme foi produzido com base nos sucessos de Drácula (1931) e de outras adaptações de tramas com vampiros para o cinema, dando origem, então, a uma linha de filmes que conseguem fazer sucesso sem desgastar o público com a repetição da fórmula de obras anteriores, agora explorando o vampirismo por meio da figura feminina e do erotismo de suas relações com outras mulheres. Outros filmes, como Vampyros Lesbos (1971) de Jésus Franco e Lust for a Vampire (1971) de Jimmy Sangster, também encontraram nesse clássico uma fonte de inspiração.


A conclusão é que Carmilla, a vampira de Karnstein é um livro atemporal, que explora bastante a figura vampiresca sem impor a ela os padrões que existiam naquela época. Camila, enquanto uma mulher sensual, enigmática e apaixonante, carrega, ao mesmo tempo, a beleza e o horror. Muito longe de apenas um rostinho bonito, ela é também um “morto-vivo” que se alimenta do sangue de humanos, e através dessa dualidade entre vida e morte, sentimos intensamente tanto sua paixão quanto sua sede por sangue, fazendo com que todos os detalhes complexos de seus sentimentos por Laura sejam de tirar o fôlego. 


Sheridan trabalha muito bem ao desenvolver essas duas personagens, de uma maneira fascinante, que não mostra apenas romance e mistérios, como também o horror de um mito sobrenatural que perpassa há milhares de anos. Com certeza, se não fosse pela existência de Carmilla, que inspirou desde o clássico Drácula, de Bram Stoker, a Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice, essas criaturas com tantas nuances, cativantes e aterrorizantes, não seriam trazidas ao mundo de forma tão complexas. 


Assim, Carmilla é pioneiro em fazer qualquer um apaixonar-se pelo romance vampiresco, e no fim, termina com a lembrança de que, independente do que tenha acontecido, a presença dessa mesma mulher enigmática não poderia ser facilmente esquecida ou superada. Tal qual Laura, o sentimento recai sobre o leitor também, que, assim como ela, ainda pensará em Carmilla durante muitos anos.





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