Tenra é a carne e frágil é o que há por baixo dela. Com a popularização de filmes, livros e até músicas que abordam o abominável ato de se alimentar do outro, você já se perguntou por que consumimos cada vez mais mídias sobre canibalismo?
Há dois anos atrás, o sucesso dos títulos de terror Fresh (2022) e Até os Ossos (2022) trouxe luz a um tema explorado outras diversas vezes no cinema, mas nunca com tanta popularidade: o canibalismo. Nas tramas, a prática é utilizada como ponte para a reflexão de diferentes problemas políticos e sociais, e a incorporação gradual desse tabu nos produtos culturais que consumimos também guarda, em seu cerne, um significado que escapa do grotesco ou da busca pelo controverso.
Ainda no mesmo ano, resultados não tão satisfatórios da exploração desse assunto – como a terrível série da Netflix sobre o serial killer Jeffrey Dahmer – também se juntaram à soma que fez com que 2022 fosse considerado por muitos como “o ano dos canibais”. Ou pelo menos o ano em que tal tópico, que ainda é motivo de burburinho coletivo, ganhou os holofotes e o fascínio de um público sedento por mais, seja no cinema, na música, com álbuns como Preacher’s Daughter de Ethel Cain, ou na literatura, exemplificado nos títulos A Certain Hunger de Chelsea G. Summers e Saboroso Cadáver de Agustina Bazterrica.
Não é difícil vermos, hoje, o compartilhamento de poesias que envolvem o canibalismo enquanto metáfora para o amor (conjunto de termos que, inclusive, está em alta) ou o ressurgimento de obras que não foram tão aclamadas na época do seu lançamento, mas que agora conversam perfeitamente com um cenário de espectadores famintos por algo que vai além da nossa realidade palpável. Imersos em um mundo cada vez mais assustador, decidimos procurar, então, por algo que assusta ainda mais do que aquilo que nos rodeia; e existe outra coisa que arrepie tanto quanto o ínfimo pensamento de consumir alguém por inteiro, de forma literal?
Muitos estudos feitos pós-pandemia refletem que algo dentro de todos nós foi para sempre mudado na mesma medida em que outros ímpetos foram desbloqueados devido ao isolamento social. E como não seria? Para fora da janela, pessoas morriam todos os dias e o medo se instaurou quando percebemos que a realidade como conhecíamos se tornava lentamente um fragmento. Esses mesmos estudos sugerem que nos tornamos mais mórbidos à custa da calamidade que nos cercou no período de reclusão, o que explica a explosão do gênero true crime e das histórias violentas de assassinos que cercaram a mídia nesse mesmo tempo, cativando um público muito específico (e extenso) de pessoas que encontraram na tragédia alheia um escapismo para a própria.
A ansiedade que anos atrás víamos retratada em filmes sobre apocalipses zumbis e desastres naturais, dessa vez, se repagina para não encararmos um medo alcançável, dentro de um futuro que parecemos caminhar em direção. Um vírus mortal feito em laboratório ou uma catástrofe cósmica estão tão distantes assim de nós? Quando paramos para pensar no panorama maior, chegamos a uma conclusão não tão fictícia e, pelo contrário, assustadora. Assim, a paranoia do fim do mundo se metamorfa em algo que existe, mas não vimos, e se vimos, é quase nunca, o que faz do canibalismo uma opção muito mais segura para nos permitirmos sentir medo de algo que não é o colapso da vida como conhecemos – novamente.
Através desse texto, meu objetivo não é normalizar o canibalismo, muito pelo contrário, é enxergar, por meio dele, como os seres humanos refletem medos e frustrações na mídia, utilizando de metáforas e tabus para passar imagens mais profundas do que carne e sangue. Seja por meio de filmes, livros ou músicas, no temor ante as profundezas da barbárie que preferimos não imaginar, a mídia encontra a fonte ideal para transmitir ideias que não seriam absorvidas da mesma forma senão assim.
Inspirada em Senhor das Moscas, romance clássico de William Golding, a série televisiva, Yellowjackets (2021), está disponível na Netflix e é um dos expoentes na abordagem do canibalismo na mídia atual. Mesmo que não utilize dele como foco da trama, a história central das personagens – cujo passado é marcado pelos traumas que sofreram após, na adolescência, o avião em que estavam cair em uma região inóspita – ainda incorpora o consumo de carne humana (aqui, por necessidade) como elemento para que a direção da série possa explorar ao máximo as raízes psicológicas do elenco.
Em entrevista ao NY Times, uma das criadoras da série, Ashley Lyle, declarou: “Eu acho que estamos obviamente em um momento muito estranho” e citou quais são os possíveis motivos pelos quais as pessoas desejam ver e ouvir histórias canibais hoje em dia: a pandemia, mudanças climáticas, tiroteios em escolas e a cacofonia política que nos cerca por anos. O que todas essas coisas têm em comum? A ansiedade que nos acomete por consequência delas, em um desespero particular de quem, sem dúvidas, vive um momento muito estranho no mundo.
No cinema de terror, Man from the Deep River (1972) é o primeiro filme a trazer a exploração canibal para o gênero e, devo dizer, um péssimo pontapé. Na história, um fotógrafo é capturado por nativos na selva tailandesa e passa por diversas torturas ritualísticas até finalmente se assimilar ao grupo. Da mesma forma, o infame Holocausto Canibal (1980), que você provavelmente conhece de algum vídeo sobre “os filmes mais nojentos do mundo”, vai muito além do gore e extrapola a violência para vilanizar povos nativos, dessa vez, mais perto de nós, na Amazônia. O que esses filmes compartilham, além de ambos serem italianos e péssimas histórias, é a conclusão de que a ideia de ser torturado e devorado é assustadora, mas não mais do que o complexo imperialista do homem europeu.
Quando os colonizadores chegaram à América, diversos povos nativos já viviam em terra firme, um episódio que sabemos – ou deveríamos saber – de fato. Entretanto, ao se deparar com guerreiros do Caribe se alimentando de outros humanos, Cristóvão Colombo deu início ao mito da canibalização e até mesmo foi quem primeiro sugeriu a palavra “caniba” para se referir a esse grupo de nativos. William Keagan, curador de antropologia no Museu de História Natural da Flórida, afirma que os primeiros registros que temos do canibalismo vieram daí, no momento em que Colombo descreveu tais guerreiros com “focinhos de cachorro, que comiam homens”.
O que partiu de Cristóvão Colombo, ainda quando ele acreditava ter descoberto as Américas, hoje se tornou um prato cheio para a discussão da paranoia coletiva e sobre o desespero de viver em uma realidade tão caótica que o escape para fora dela não é mais a calmaria do cinema ficcional, mas sim o consumo de mídias que extrapolam o absurdo do que estamos acostumados a ver.
Até a palavra em si, canibalismo, soa incômoda quando escrevo, e o tempo que passei lendo outros textos sobre o assunto não foi menos desconfortável. Assim como todo tabu, discutir algo nessa escala é se colocar em um território muito perigoso dos tópicos sensíveis da nossa existência enquanto sociedade, mas o canibalismo pode ser, entre tantas estranhezas, a maior delas. Talvez porque envolve diretamente uma quase fetichização da carne humana, como se o pós-morte fosse uma possibilidade aprazível para alguém. Quando enxergamos do ponto de vista de que essa prática é condenada porque escapa dos limites da nossa própria civilidade, podemos compreender também o porquê das pessoas consumirem assuntos tão indigestos.
Não é apenas sobre a banalização da violência, que tanto vemos nos jornais e em outros horrores mais fictícios, mas sobre o conforto pré-estabelecido de que aquilo não pode nos alcançar. É um crime, sim, se alimentar de outro ser humano, mas além das barreiras éticas, há algo de muita moral em não normalizar uma prática tão abjeta, e até em suas próprias subversões, as pessoas precisam, no fundo, discernir o que é real do que não é; isso se estabelece a partir do momento em que declaramos que canibalizar alguém é inquestionavelmente errado. O que, de fato, no modo de vida em que estamos inseridos, é.
Em 2022, entretanto, o lançamento do longa Fresh, da diretora Mimi Cave, abriu as portas para o renascimento do canibalismo no cinema. Aqui, o canibalismo é utilizado como metáfora para acentuar que mulheres têm seus corpos comercializados da mesma forma que pedaços de carne são expostos em um açougue, e o filme é satisfatório no que se propõe a dizer. Celebrado pela sua abordagem satírica de assuntos como misoginia e abuso de poder entre bilionários, acompanhamos a trajetória de Noa (Daisy Edgar-Jones), uma mulher seduzida pela figura charmosa de Steve (Sebastian Stan), que se esconde debaixo da fachada de um cirurgião plástico aparentemente perfeito, mas guarda uma obsessão por carne que vai além de um simples jantar. Se o canibalismo é sobre o consumo do outro, aqui, ele encontra seu terreno mais fértil, pois poucas coisas são tão essencialmente capitalistas quanto isso, o que só torna a crítica do filme ainda mais pertinente.
Desde suas primeiras representações, ainda nos anos 80, a canibalização é o veículo perfeito para traduzir medos e preocupações sociais que não seriam vistos da mesma forma se fossem apresentados de um jeito explícito. Antes, o medo do desconhecido deu origem a filmes propositalmente violentos e preconceituosos, como os italianos que mencionamos e não merecem destaque, mas outras obras surgiram no século XXI para salientar o uso de tabus em questionamentos que nos fazem pensar no mundo ao nosso redor, mesmo sem percebermos.
Afinal, a questão é mesmo algo ser tão inimaginável quanto o canibalismo? Ou somos nós mesmos o maior problema?
A imagem icônica do psicopata Hannibal Lecter, por exemplo, se tornou uma representação queer no remake da história, feita pela NBC. Na série, não somente o canibalismo é visto em uma lente mais chique e sensual, que beira o erudito, mas também a sexualidade do personagem, antes apenas mencionada no livro que deu origem à Hannibal, é mais explorada, assim como sua relação com a carne é reformulada em amor quando o assassino em série se vê obcecado por Will, um detetive que trabalha junto à Lecter na polícia. Dessa vez, a ideia da canibalização foge dos princípios do próprio personagem e traz uma abordagem mais poética, como quem insinua que não há nada mais romântico do que devorar (literalmente) a pessoa que se ama.
Drumlin Crape, em seu artigo sobre vilões queer, fala das diferenças entre a primeira representação de Hannibal e a importância do canibalismo como amor na história. Para ele, enquanto Thomas Harris, autor de Hannibal (1999), evoca a sexualidade do personagem em um elemento para o terror, Bryan Fuller, criador da série, constrói uma versão que engaja em um romance terno e tenso com outro homem, de uma forma que humaniza o personagem – o que, talvez, faça o público simpatizar com ele – e contradiz a tradição homofóbica criada pelo escritor do livro há mais de 20 anos atrás.
Através de um prisma que reflete as diversas faces da sociedade e suas incongruências, escolhemos o bicho de sete cabeças da vez para esconder uma crítica maior. Em Raw, filme francês indie de 2016, uma jovem vegetariana é de repente forçada a comer carne e serve como pano de fundo para a diretora Julie Ducournau traçar questões maiores sobre a vida adulta e a natureza violenta que nos desperta ao crescermos. Já em Até os Ossos (2022), dois jovens marginalizados encontram refúgio um no outro em um mundo em que algumas pessoas precisam se alimentar de carne humana para sobreviver. Ambos roteiros não estão tão distantes assim da nossa realidade, mas se mascaram na carne para transmitir sua mensagem e muito dialogam com a comunidade LGBTQIAPN+, que, não por acaso, é quem mais consome esses filmes, justamente pela identificação que tais alegorias oferecem.
Implicitamente, esses títulos trazem o canibalismo como vetor para uma reflexão profunda e psicológica sob aquele que assiste. Se pensarmos também no terror em si, enquanto um gênero do cinema que desperta um medo primitivo no espectador, podemos enxergar pouco a pouco o fascínio pela vulnerabilidade extrema que o canibalismo sugere. Afinal, por que testemunhar algo tão horrível pode, de alguma forma, ser uma experiência emocionalmente catártica?
A diretora de Yellowjackets traz, outra vez, uma resposta plausível para essa questão, ao dizer: “Acho que o impensável se tornou pensável” em que completa, “e o canibalismo está exatamente nessa categoria do impensável.”
20 anos atrás, o canibal favorito da cultura pop era o psiquiatra Hannibal Lecter em suas diversas adaptações para o cinema e, hoje, talvez seja Timothée Chalamet com cabelo rosa, coberto de sangue no romance antropófago de Até os Ossos (2022). Com o passar do tempo, as ressignificações do canibalismo enquanto metáfora para diferentes incógnitas no mundo que conhecemos apenas acompanham os passos de uma sociedade cada vez mais deslumbrada pela violência e pelo absurdo.
Se um dia popularizamos histórias de zumbis e vampiros, pode ser que os canibais sejam a obsessão da vez, e as implicações disso refletem mais sobre quem somos e o que pensamos do que o ato de devorar carne humana. De certa forma, estamos, pouco a pouco, devorando uns aos outros e preferimos não parar para pensar no porquê, mas quem sabe assistir filmes sobre isso seja uma verdade mais fácil de digerir.
texto lindo e muito bem construído!