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Clarice Rodrigues

Arrume-se Comigo: o encontro da periferia com a moda alternativa

As rappers Tasha e Tracie unem a originalidade das favelas com marcas famosas, criando um estilo próprio que reflete resistência e representatividade.


A moda é uma forma de expressão que reflete a sociedade e seus diferentes aspectos, carregando uma personalidade própria e transmitindo seus valores e ideais. Mas até onde a identidade expressada é aceita e incluída socialmente? O encontro da cultura periférica com o mundo elitizado gera fortes repercussões em torno de expressões culturais diversas, como bem representado ao longo da carreira de rappers como a dupla Tasha e Tracie.


"Não tem como ignorar a cultura periférica. Às vezes, o rosto disso é a superfície do que as pessoas podem ver, porque quem recebe as informações normalmente são as pessoas mais elitizadas e não de quem de fato carrega essa estética." - Tasha e Tracie, em entrevista ao Steal The Look.

Nascidas e criadas em São Paulo, as gêmeas são fundadoras do movimento (e blog) Expensive shit e do Mulheres Pretas Independentes de Favela (MPIF), que por meio da arte, moda e informação, valorizam a autoestima e autonomia dos jovens periféricos e enaltecem a cultura das comunidades. Ambas trilham um caminho importante de representatividade na moda brasileira e como estilistas e compositoras, carregam uma enorme bagagem cultural e uma identidade visual marcante, típica das favelas de São Paulo, onde o estilo chamado de mandrake se destaca.


Retratando marcas que conversam diretamente para a periferia, ao exaltar, em suas letras, nomes como Planet Girl, marca que traja o público feminino das favelas desde o início dos anos 2000 e que consolidou a estética das planetárias (mulheres periféricas que consomem peças da marca), as rappers geram identificação no contexto que as cerca, provando que a moda vai além de peças de roupas ou tendências nas redes sociais por se manifestar através de vivências e aspectos sociais em diferentes comunidades ao redor do Brasil. Assim, as cantoras, que tornaram-se ícones na representação da inovação e da individualidade, reafirmam a identidade de todo um grupo, colocando-o no centro da passarela. 


Mulher de óculos posando para foto
Vinil Santana, @viniiiiil

Com o peso que as gêmeas carregam na cena da música e da moda, não é difícil encontrar artistas influenciados por elas. A modelo recifense, Vinil Santana (@viniiiiil), destacou durante entrevista para a Guilhotina a importância de nomes como Tasha e Tracie na luta pelo reconhecimento da cultura periférica e na sua paixão pela arte, pois, segundo ela, toda arte é política.  


"Eu queria me expressar, eu queria que as pessoas me ouvissem! E aí eu pensava: de que forma eu posso fazer as pessoas me ouvirem? De que forma eu posso fazer as pessoas me enxergarem, sabe? Foi através da moda, conciliando a moda com a política, para fazer as pessoas olharem também para pessoas de periferia, para pessoas pretas, para pessoas LGBTs, pessoas trans, sabe? Que são recortes que eu carrego comigo, então acho que nada mais justo do que trazer a moda para isso", conta Vinil.

O uso da moda como forma de resistência política é vital para a construção de um estilo e de uma referência. Ao reforçar a originalidade da estética mandrake, Tasha e Tracie geram identificação com o público e representam a cultura paulista, como fizeram ao ir de Cyclone para a premiação BET Hip Hop Awards, enaltecendo com orgulho o estilo periférico em terras internacionais. Ressaltar a periferia através da arte também é uma forma de manifestar resistência cultural, como a grife baiana, Dendezeiro, ao recriar o uniforme das Olimpíadas de 2024 com elementos que abraçaram a identidade brasileira e engrandeceram as comunidades de todo o país.


As rappers Tasha e Tracie para o BET Hip Hop Awards posando para a foto
As rappers Tasha e Tracie para o BET Hip Hop Awards.

Você tem que entender de onde ela [a peça] vem, você tem que entender a importância dela, até para a pessoa que fez aquela peça, para a pessoa que criou, para a pessoa que tá ali de frente na marca, sabe? Eu valorizo muito isso, então se eu tô usando uma peça, se eu tô usando um cabelo ou qualquer coisa, para mim isso tem que ter alguma importância, isso tem que ter algum valor, sabe? — Vinil

Um forte exemplo de manifestação alternativa e original pode ser encontrada a partir da estética dos “ratões” de Pernambuco, que subvertem os padrões estéticos definidos pela sociedade e são rapidamente reconhecidos por sua originalidade e regionalidade, envolvendo-se diretamente com o brega funk, estilo musical marcante do estado. Ao trazer destaque à Pernambuco e sua identidade cultural singular e imersa em criatividade, os “galerosos”, como são chamados os jovens que compõem esse grupo, desafiam padrões estéticos e brincam com texturas, estampas e cores, como retratado pelos estilistas Amanda Brindeiro e Marcelo Mendx no desfile de moda em que Vinil Santana desfilou. Organizado pelo Sesc de Santo Amaro, em parceria com alunos de moda sustentável, o desfile colocou em foco a identidade periférica recifense enquanto tema do evento.


Sobre o desfile, Vinil destaca o impacto de Marcelo Mendx, elogiando seu trabalho de exaltar a cultura e moda periférica e o forte significado do evento para ela e para a arte: "Pra mim foi muito gratificante, muito mesmo! Tanto pelo fato de ser a primeira vez que eu estava desfilando quanto pelo fato de ser um desfile que era voltado pra cultura da periferia, que trazia elementos e até uma trilha sonora que também era algo muito nosso, sabe?"


A beleza periférica é rica quando convém 


"Batemos muito na tecla da cultura da periferia, que antes não era muito valorizada. Até que veio a estética do Brasil core. O curioso é que todo mundo pensava na periferia global como algo legal, mas com a daqui as pessoas ainda têm preconceito." – Tasha e Tracie, em entrevista ao Steal The Look. 


A popularização esvaziada do estilo mandrake representa o poder de quem dita o que é relevante e interessante diante da sociedade. O que antes era considerado "brega" por ser popular nas favelas torna-se “diferente” se utilizado por pessoas de fora desse ambiente, como aconteceu com a trend “nevou”, disseminada pelos crias (jovens da periferia) do Rio de Janeiro, que descolorem os cabelos no fim do ano, em uma referência à neve do Natal. Após alcançar níveis grandes de popularidade, a tendência chegou até mesmo dentro da política, quando o prefeito de Recife, João Campos, apareceu em um evento com os cabelos igualmente descoloridos e afirmou ter “nevado” também.


É possível observar esse processo se repetir e alimentar um ciclo elitista que separa a moda periférica de um reconhecimento artístico que valoriza as favelas. O momento em que algo se torna “brega” ou “batido” é o momento em que tais coisas tornam-se acessíveis a diversas pessoas, não pertencendo mais exclusivamente a uma porção privilegiada da sociedade. A moda, em seu cerne, abrange muito mais do que preferências estéticas, sendo uma força social capaz de subverter o sistema elitista com seus valores. No caso da periferia, os preconceitos de classe surgem por meio de uma marginalização intensa e uma apropriação que esvazia a cultura e a monopoliza sem consciência. 


A cultura marginalizada, quando apropriada pela elite, transforma-se em tendência ressignificada, esvaziando seu sentido histórico e se apropriando de narrativas distintas com o objetivo de viralizar algo que já era popular dentro desses espaços, mas que fora deles era mal visto. Por isso, a reivindicação de tal identidade no rap nacional é fundamental para perpetuar um orgulho real sobre a moda, a música e a realidade da periferia. 


Ao enxergar a ambiguidade sobre a estética periférica estar em evidência, Vinil ressalta a relevância do conhecimento ao consumir elementos do estilo periférico e fala da forma elitista com que a sociedade trata essa cultura. Por que quando uma blogueira privilegiada usa uma Kenner é considerado bonito e a opinião social é diferente quando se trata de um jovem periférico com esse mesmo calçado nos pés? O questionamento leva a resposta simples e difícil: se o corpo pobre não é valorizado, o que dizer de sua arte? 


"Para você ser você tem que saber! É bem perigoso isso porque são pessoas que não entendem o valor de uma peça, não passam pela mesma realidade, não sabem o quanto é bonito uma camisa de time, não entendem que a gente se expressa também através da nossa roupa, que estão se “apropriando da estética da periferia. Mas é bom a gente ver o outro lado, porque a gente consegue ver que os aspectos daqui da periferia tão chegando em outras pessoas, a cultura da periferia tá chegando em outras pessoas. Então tem um lado bom e tem um lado ruim também." - Vinil Santana.

Moda e resistência, estética que conta vivências 


De tal forma, a cultura alternativa da periferia insurge diante de normas estabelecidas há muito tempo, e é aí que as manifestações se encontram. Vivendo nas margens de uma exclusão, a partir do momento em que uma tendência é criada e disseminada na favela, se torna, então, uma alternativa ao padrão elitizado do que é visto no restante da sociedade. Em um ciclo transitório de inspirações entre a burguesia e a periferia, o mercado continua com uma visão que exclui diretamente a cultura das favelas. 


Modelo Vinil desfilando na passarela
Foto: @7ostt

Vinil acredita numa mudança lenta do mercado da moda: “Hoje em dia, por exemplo, a gente vê elementos que são de periferia na passarela”. A modelo expressa esperança ao falar sobre o cenário da moda e sua receptividade à cultura das comunidades, com ânsia de mostrar ao mundo o valor da arte periférica por meio da quebra de estereótipos preconceituosos, ao conscientizar a sociedade sobre o consumo dessa arte, assim como suas referências, Tasha e Tracie, fazem com o MPIF, por exemplo.


A importância de movimentos como a coleção do Dendezeiro ou o desfile de Amanda Brindeiro e Marcelo Mendx é grande, pela representatividade que carregam e por disseminar a beleza da favela e do Brasil. Quando perguntada sobre o significado que a moda tem para si, Vinil expressa um carinho imenso e confessa um projeto secreto: 


"A moda, para mim, a cultura periférica, ela se encontra em um lugar de amor mesmo, um lugar de orgulho. Porque além de ser a forma como eu me expresso, além de ser a forma como eu me apresento enquanto ser humano pelo mundo, também virou o meu trabalho. Quantas vezes eu puder falar de onde eu venho, que eu venho da periferia, que eu venho de favela, eu falo, sabe? Porque é isso, isso tudo é quem eu sou hoje, sabe? Hoje em dia eu estou fazendo um projeto que fala sobre isso, dirigindo um projeto que é sobre a moda na periferia."


O projeto independente dirigido pela modelo busca gerar visibilidade em torno da cultura periférica, em parceria com marcas amigas que buscam o mesmo. Vinil conta estar escrevendo sobre a iniciativa há um tempo e almeja trazer um conteúdo audiovisual diferente que, segundo ela, nunca foi visto antes e é algo que pode chocar as pessoas. Afinal, alavancar a história de elementos alvo de preconceito e expressar a identidade da periferia, assim como da arte que a cerca em coleções, por exemplo, é crucial para provocar o público a conhecer a cultura periférica e se desarmar de valores sociais elitistas. Segundo Vinil, o projeto carrega consigo um peso de ressignificação do estilo dos jovens das favelas brasileiras e luta pela reivindicação da beleza periférica.


Tasha e Tracie, lado a lado, posando juntas para a foto
Foto: divulgação

Seja trajados de Cyclone ou outras marcas, mesmo enfrentando padrões excludentes, as pessoas que fazem parte do cenário do rap nacional e artistas como Tasha e Tracie resistem junto à cultura periférica. A moda difundida nas favelas, seja em São Paulo, Rio de Janeiro ou Pernambuco, é resistência. Da mesma forma, a cultura periférica também é resistência, e sua capacidade de expressar vivências por meio da moda é um reflexo vívido do potencial de expansão social que a criatividade tem quando exercida por grupos marginalizados.


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