Almodóvar: retratos de um cinema carmesim
- João Matheus Marques
- 16 de nov. de 2024
- 7 min de leitura
Amarelo, azul e vermelho são as cores primárias da composição que Pedro Almodóvar, diretor de cinema espanhol, pinta diante do olhar aguçado de seu telespectador. As “cores de Almodóvar” já foram referenciadas em músicas como Esquadros, de Adriana Calcanhotto, e marcam, atreladas a outros elementos de sua vibrante mise-en-scène, a originalidade de um diretor que é, e que não poderia deixar de ser, a alma de seu tempo. Entre tramas novelescas, saltos altos e as brilhantes atuações de suas musas (atrizes com quem realizou a maior parte de seus projetos), o cineasta explora suas paixões em narrativas embaladas pelo característico ritmo melódico e humor irreverente que o consagraram.

Gestado no caldeirão da contracultura na Espanha durante o fim do regime nazifascista de Francisco Franco (1939-1975) e no contexto de movimentos de contracultura como a Movida Madrileña, Pedro encontrou no melodrama uma chave de ignição para explorar vivências suas e daqueles que o cercavam. Ao fim de um período sombrio na história do país, artistas das mais diversas áreas vislumbraram uma oportunidade de explorar temáticas distintas na busca pela expressão de sua individualidade. O estilo alternativo e a rebeldia fervente de sua geração, que encontra pela primeira vez a chance de se mover contra o sistema, influenciaram grandemente no léxico usual que o diretor traça para seus personagens e temáticas.
Com uma câmera Super 8 em mãos, as diversas histórias que acumulou de sua juventude e o trabalho que exerceu em uma companhia telefônica, Almodóvar foi seu próprio professor na sétima arte. Durante a infância, na cidadezinha em que vivia a 246 quilômetros de Madri, frequentava o cinema da região, assistindo a filmes que não eram indicados para sua faixa etária e adquirindo, pouco a pouco, um vasto repertório cinematográfico. Na capital, foi de futuro seminarista a vocalista de uma banda punk e ao convidar amigos e conhecidos, juntou o pouco dinheiro que ganhava para armar-se de sua verdadeira paixão: o cinema. Em 1986, criou a própria produtora de filmes, El Deseo S.A, ao lado de seu irmão, Agustín.
“Os filmes que fiz quando era mais jovem foram os mais honestos que eu poderia fazer, e acredito que foram bastante fiéis à vida que eu levava em Madri naquela época. Eu estava bem conectado com o pop, com a música […] era o verdadeiro renascimento do pop, e também o renascimento da liberdade da Espanha naquele período. Meus ídolos eram Andy Warhol e John Waters, e eu realmente acreditava que aqueles filmes condiziam com o mundo que eu vivia então.” – Pedro Almodóvar para Damon Wise.
Atravessado por esse contexto político e pela consolidação do cinema underground, os primeiros longas-metragens de Pedro são marcados pela transgressão de conceitos e signos definidos. É através de um jogo de contravenções das normas vigentes que ele aborda, por exemplo, questões ligadas à religião, abuso de substâncias e identidades queer. Em filmes como Maus Hábitos, de 1983, o diretor explora a rotina de uma cantora perseguida pela polícia, que encontra refúgio em um convento regado à lisergia das drogas, onde freiras cuidam de um tigre selvagem e exploram seus amores por outras mulheres. Nesta obra, o catolicismo e a carne se revolvem em uma colagem entremeada de estampas na exploração do desejo. Figuras assépticas, como as freiras, deveriam almejar um belo vestido ou manter relações com outras companheiras de hábito? Almodóvar não está aqui para seguir cartilhas de moralidade ou responder perguntas que sigam quaisquer convenções, mas para representar a humanidade em toda sua dor e glória.

Durante os anos 80, surge também Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, clássico atemporal para os fãs do espanhol e responsável por alçá-lo ao prestígio internacional. Na trama, Pepa (Carmen Maura), uma radialista, é abandonada por seu amante, Iván, e uma série de situações caóticas e coincidências absurdas evoluem a ponto de ebulição quando a vida de diferentes mulheres se entrecruzam em seu apartamento. Uma sopa fria de tomate (gaspacho) repleta de soníferos, uma situação com reféns e frenéticas perseguições de motocicleta são apenas vislumbres do verdadeiro sistema nervoso de relações que pendem ao desastre neste teatro da comédia humana. Carmen Maura, também participante assídua na Movida Madrileña e do mesmo contexto contracultural que moldou a persona do diretor, já havia se consolidado como uma de suas grandes musas em Pepi, Luci, Bom Y Otras Chicas del Montón (1980) e O Que Fiz Para Merecer Isso? (1984), e novamente reluz sob o jogo cênico de Almodóvar ao lado de outras figuras recorrentes em sua filmografia, como Rossy de Palma, Antonio Banderas e Julieta Serrano.
A relação que o diretor mantém com o elenco ao longo de seus trabalhos vai muito além das telas, em meio a amores e dissabores. Carmen Maura, que estrelou 8 filmes ao lado de Almodóvar, afirmou que ambos tiveram uma experiência “muito ruim”. A ininterrupta relação dos dois resultou em um afastamento que só se findou 18 anos depois, em 2006, com Volver.
“Quando li o roteiro e vi meu papel de fantasma, pensei: ‘Que papel mais estranho… Será que vou estar imersa em nuvens?’ Pedro sempre nos coloca à beira do abismo. Gosto desses riscos. Voltamos a trabalhar depois de 18 anos, e naquela época não existiam estas teorias de motivação ou de ensaio. Como poderíamos segui-las se não havia tempo nem dinheiro para nada? Em ‘Volver’ não notei nenhuma diferença em como ele me dirigia e não notei nenhuma diferença em como eu respondia como atriz.” – Carmen Maura em entrevista concedida ao Valor, por Alessandra Meleiro.

Volver é um mapa traçado sobre a relação tênue entre retornos, partidas, escolhas e fantasmas, que voltam para nos assombrar quando menos aguardamos a retomada de sua presença. Penélope Cruz interpreta a protagonista em uma trama que acompanha três mulheres de gerações distintas e mantém uma relação de grande amizade e companheirismo com o diretor.
A atriz sempre foi fã dos trabalhos de Almodóvar e frequentava locais onde achava provável encontrá-lo, sonhando com a possibilidade de estrelar em um de seus longas. Seu debut almodovariano foi com Carne Trêmula (1997) e desde então tornou-se parceira indissociável de seu longo acervo cinematográfico, atuando em Tudo Sobre Minha Mãe (1999), trama centrada em questões de luto, gênero e identidade LGBTQIA+ que venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional, Volver (2006), Abraços Partidos (2009), Dor e Glória (2019) e Mães Paralelas (2021), o qual lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz no ano seguinte.
Sobre a relação de ambos, Pedro afirmou ao New York Times que é algo quase “místico”, em que um sempre ocupará um lugar de profundo carinho na vida do outro enquanto existirem. Quando Penélope ganhou uma homenagem no Museu de Arte Moderna de Nova York pelas obras de sua carreira, seu amigo de longa data enviou um vídeo e brincou com a ideia de que, com seu envelhecimento, a atriz teria que se dedicar aos cuidados dele, tornando-se, assim, sua mãe.
A representação da maternidade se encontra presente em boa parte das obras de Almodóvar. Fortemente influenciado pela relação que mantinha com a própria mãe, tal laço se transparece na figura do jovem Estebán, em Tudo Sobre Minha Mãe, nos diálogos de Volver e em retratações imagéticas da Virgem Maria. Assim, o madrileño perpassa diferentes formas de maternidade e de constituição familiar em suas narrativas. Além da figura materna, características como o elemento queer autobiográfico (em projetos como Dor e Glória e Má Educação, cujos protagonistas são espelhos que refletem seu próprio eu), a representação de personagens femininas complexas (um impacto da presença de suas irmãs e de sua mãe em sua vida), cores quentes – também chamadas chillones, literalmente “cores que gritam” –, um erotismo pulsante e histórias de vingança formam a principal viga de sustentação que permeia as narrativas dos filmes de Pedro.

Na última década, porém, Almodóvar parece querer explorar terrenos distintos. Trabalhando com atores de renome como Ethan Hawke e Tilda Swinton, o diretor sai do circuito espanhol e mergulha em uma aposta no cinema internacional. A Voz Humana (2020), de apenas 30 minutos, acompanha uma mulher sem nome (Tilda Swinton), que espera a vinda de seu ex-parceiro para retirar os pertences de sua casa após a separação. Acompanhada unicamente de seu cão, a personagem coexiste com suas incertezas em um cenário artificial que simula uma residência. Três anos depois, o novo média-metragem do diretor é disponibilizado no Brasil pelo serviço de streaming Mubi, Estranha Forma de Vida: um filme de faroeste gay protagonizado por Ethan Hawke e Pedro Pascal, dando vida a dois caubóis que, juntos, reacendem antigas chamas do passado.
O Quarto ao Lado, lançado este ano, é a nova oferta de um maestro que ainda sabe bem como guiar sua orquestra e a primeira película inteiramente gravada em língua inglesa do diretor. Em uma história que transita ao redor das noções de mortalidade e perda, o cineasta traz à tona debates sobre eutanásia e a força dos laços que criamos, os quais podem ser desfeitos e refeitos pelas circunstâncias mais inesperadas.
Desta vez, quem orbita nesse retrato carmesim e permite-se guiar pela imaginação do autor é ninguém mais, ninguém menos que Julianne Moore. Contracenando brilhantemente com Tilda Swinton (quem parece ter se tornado o novo rosto favorito de Pedro), ambas entregam uma performance existencialista e real que prova que “há muitas formas de viver dentro de uma tragédia”. O filme venceu o Leão de Ouro na 81ª edição do Festival de Cinema de Veneza e teve sua vitória anunciada pela presidente do júri e também atriz, Isabelle Huppert, conhecida por seu papel em A Professora de Piano (2001).

Ao ser questionado sobre o motivo de suas produções mais recentes colocarem o costumeiro erotismo de lado, em entrevista para a Splash, com a participação do Estadão, Pedro afirma que: "Em vez de desnudar os corpos, preferi desnudar o olhar e as palavras dos atores para conseguir o mesmo efeito. […] As palavras desnudas são tão eróticas e sensuais como os corpos desnudos.”
Ao mirar sempre na veia cava de tudo aquilo que é tabu, Pedro Almodóvar segue como um dos maiores diretores do cinema hispânico, com 2 Oscars, 2 Globos de Ouro, 9 prêmios Goya, 5 British Academy Film Awards e muitas outras condecorações que atestam sua inegável habilidade. No Festival de Veneza de 2020, Almodóvar disse que sua maior ilusão era continuar vivo e fazendo cinema.
O que esperar de suas próximas tramas ainda é mistério, mas uma certeza se mantém viva: a de que o cinema espanhol segue muito bem representado por aquele que projeta não somente autoficções, mas memórias vívidas e ardentes que vibram a trajetória de seu país em toda a sua imensurável complexidade.
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