Entre retratos da beleza e sua relação intrínseca com o envelhecimento, "A Substância" surge como um marco no body horror e na representação da feminilidade grotesca no cinema.
“Você já sonhou com uma versão melhor de si mesma?”, essa é a premissa de A Substância (2024), escrito e dirigido por Coralie Fargeat.
O filme tem como protagonista Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma atriz que, na juventude, alcançou o ápice do sucesso na carreira, mas que com o passar dos anos viu o próprio estrelato ruir pouco a pouco, de vencedora do Oscar à apresentadora de programa fitness em um canal de TV. Em seu aniversário de 50 anos, ela é demitida por conta da idade e ao notar a decadência de sua carreira diante do envelhecimento, recorre a um procedimento experimental: injetar uma substância que replica células e cria temporariamente uma versão mais jovem e melhor de si mesma. Essa replicação celular acaba dando origem à Sue (Margaret Qualley), o outro pedaço de Elisabeth e sua nova possibilidade de brilhar mais uma vez.
Entretanto, há regras para o uso da substância: primeiro, é preciso entender que as duas versões do experimento ainda são a mesma pessoa, e para respeitar o equilíbrio, ambas devem alternar a cada 7 dias, sem exceção (o que, pela premissa do filme, obviamente não será cumprido). Assim, o longa é dividido em três partes que explicam detalhadamente cada etapa do processo envolvendo o uso da substância e as consequências desastrosas que a aplicação descuidada do composto pode causar. Seguindo essa linha, a obra é uma junção chocante e provocante de body horror (terror corporal) e ficção científica, abordando satíricamente temas como pressão estética e a busca incessante pela juventude.
Coralie Fargeat já trabalhou anteriormente com a imagem da complexidade feminina em seu filme de estreia, Vingança (2017), mas, em A Substância, ela explora outro eixo: a forma como as mulheres são descartadas pela indústria com o avançar da idade e como isso afeta diretamente a vida privada e a carreira de uma mulher. Em entrevista para Mia Lee Vicino, a cineasta explica: “A figura ‘freak’ realmente fala com nossa humanidade [feminina], com nosso medo de não ser amada, com nosso medo de ser diferente, com nosso medo de ser julgada. Existe uma alma incrivelmente frágil, terna, macia e genuína por trás dessa carne.”
Inspirada por clássicos do terror, como A mosca (1986), O iluminado (1980), Carrie (1976) e Vertigo (1958), a diretora francesa explora a fotografia por meio de uma câmera ousada e bem trabalhada, utilizando de perspectivas diferentes para mostrar cada detalhe, sem contar com a trilha sonora, que promove um bom entendimento do ambiente em que cada cena se passa e das emoções sentidas pelas personagens ao desenrolar da trama. A primeira cena do filme é brilhante, mostrando a estrela de Elisabeth Sparkle na calçada da fama e seu desgaste com o decorrer do tempo, utilizando apenas de um enquadramento simples, mas que é genial na transmissão do que propõe a ideia central da obra.
A maneira como Sue é retratada pela câmera também é notável e muito marcante. Ao focar nos detalhes do corpo e do rosto – ressaltando características consideradas desejáveis –, o filme, de certo modo, nos projeta a sensação de que, assim como Sue, você deve querer ser como ela: jovem e bonita. Em outra perspectiva, a forma como o produtor misógino, Harvey (Dennis Quaid), é apresentado ao público, através de um ângulo que exprime estranheza, transmite para os espectadores uma forte sensação de nojo e repulsa. Os enquadramentos das cenas em que ele aparece contribuem muito para a construção da imagem grotesca do personagem, como na cena do restaurante com Elisabeth ou quando ele encontra Sue pela primeira vez.
Entregando uma atuação real e intensa, Demi Moore ressurge nas telonas de forma esplêndida, e A Substância não seria metade do que é sem sua interpretação. Uma das cenas em que a dramaticidade da atriz mais se destaca é quando Elisabeth está se preparando para um encontro, logo após ser acometida pela primeira consequência visível do uso da substância. Com um atuação arrepiante, é possível visualizar a personagem como uma escrava da pressão estética, se arrumando e se desfazendo sem parar, enxergando a si mesma de maneira distorcida e irreal. Ao vivenciar uma crise diante do espelho, ressaltada pelo assombro sob a imagem de Sue, Demi Moore reflete brilhantemente o desespero e a aflição da dismorfia corporal, como se o filme fosse uma grande sala de espelhos em que podemos enxergar todas as sombras do que acontece ali.
A ficção, em certo sentido, se assemelha à vida real, tendo em vista que Demi Moore, na juventude, também se consolidou como uma atriz de enorme sucesso em Hollywood. Estrela de filmes como Ghost (1990) e A Few Good Men (1992), acabou escanteada a papeis menores com o passar do tempo, tal qual várias outras atrizes dentro de um cenário que enxerga a figura feminina apenas como produto. Enquanto isso, Margaret Qualley, que vem chamando a atenção da crítica e do público há alguns anos, se firma como um nome em ascensão, participando de obras como Era Uma Vez… em Hollywood (2019) e Poor Things (2023). Mesmo em contextos e épocas diferentes, ambas enfrentam as pressões e desafios de uma indústria sexista, que impõe datas de validade para profissionais mulheres e decide quando elas devem “sair de circulação”.
À medida que a história avança, os paralelos entre Elisabeth e Sue vão se tornando cada vez mais evidentes, resultando em cenas sublimes que mostram o confronto entre juventude e velhice, auge e esquecimento. Sue sente uma enorme aversão pelo que sua matriz, Elisabeth, é e foi, acompanhada de uma ambição forte que a faz desrespeitar o equilíbrio exigido pelo experimento. A cena que mais ressalta a rivalidade e o ódio mútuo entre as versões ocorre quando Elisabeth, agora sofrendo física e psicologicamente devido aos atos de sua outra persona, assiste à entrevista de Sue na TV. Além das falas cheias de raiva, a cena conta com uma evidente tensão, que apenas se intensifica à medida que a imagem, a iluminação e o som deixam tudo mais forte.
Em diversas cenas, o longa-metragem transita entre realidade e fantasia, utilizando disso como uma forma de estabelecer sua crítica. Mesmo que o filme se passe em Los Angeles nos dias atuais, A Substância vai além da realidade e emerge em seu próprio mundo, o que o torna atemporal e permite que os eventos da história possam ser realistas e coerentes em qualquer época. Em entrevista a Vogue, Coralie Fargeat comentou: “Desde o início, eu sabia que não estava interessada em retratar a verdadeira Hollywood, mas sim sobre o que é. É sobre beleza. É sobre sucesso.”
Os momentos finais do filme têm reviravoltas interessantes, com uma maquiagem fantástica e um body horror fascinante. O que se revela, aos poucos, é uma mistura de diversas partes do corpo feminino, que, antes consideradas desejáveis, se tornam agora um conjunto detestável. O que é resultado da junção de duas partes de uma mesma mulher se torna uma metáfora sobre a objetificação da feminilidade e a forma como as pessoas reagem diferentemente ao encararem algo que antes viam com excitação e agora provoca apenas rejeição e repulsa.
Apesar de começar bem, o filme peca no ritmo. Em determinado ponto, se torna cansativo e se estende além do necessário, fazendo com que o público perca um pouco do envolvimento com a trama. Além disso, o roteiro apresenta algumas inconsistências que não atrapalham a trama em si, mas causam um certo incômodo se pensarmos que determinadas situações não poderiam coexistir com outras, a não ser que o espectador assista ao filme com uma grande suspensão de descrença.
Embora consiga transmitir sua crítica, o desfecho, para algumas pessoas, pode não ser como esperado. Durante o desenrolar do enredo, a obra gera expectativas de que haverá um final impactante, e elas até chegam a ser atingidas, mas não da forma que se espera. Ainda que os últimos 20 minutos do filme contem com referências a filmes clássicos do terror, a execução torna a experiência confusa e bagunçada, e mesmo que isso não o transforme em um filme ruim ou anule suas outras qualidades, deixa para trás a sensação de que ele poderia ter entregado mais. Quando se finda, apenas confirma o que já era previsível na premissa, não deixando espaço para sutilezas. E então, o filme encontra seu encerramento no mesmo lugar em que começou, na calçada da fama, com a estrela de Elisabeth Sparkle concluindo a analogia do trajeto de ascensão à queda da atriz.
Considerado por muitos como “o filme de terror do ano”, A Substância é, apesar de alguns deslizes, um bom filme e consegue cativar e impactar seu público proporcionalmente. Coralie Fargeat utiliza de uma direção ousada que prende a atenção do espectador no que é visto em cena, e até mesmo em momentos chocantes e perturbadores é impossível desviar o olhar. Elementos como fotografia, maquiagem e figurino são utilizados sem medo para reforçar a crítica do filme, retratando a misoginia velada que leva diversas mulheres a buscarem padrões irreais de beleza e juventude.
No fim, a jornada de metamorfose entre Elisabeth e Sue se mostra como uma obra provocadora, com atuações impecáveis de Demi Moore e Margaret Qualley, e conseguiu conquistar o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes deste ano. O longa-metragem de Fargeat ainda está em exibição nos cinemas e entrará no catálogo da MUBI no dia 31 de outubro.
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