A atmosfera subversiva de “Esquinas”: uma entrevista com Anavitória
- Clarice Rodrigues e Maria Luiza Albuquerque
- 7 de fev.
- 12 min de leitura
Depois de quase quatro anos do álbum Cor, a dupla Anavitória traz no novo disco, intitulado Esquinas, uma proposta diferente dos lançamentos anteriores, com a ousadia de descobrir outras sonoridades como indie e rock, mas seguindo com a essência do duo. Em contraponto ao seu primeiro trabalho, Anavitória, de 2016, que chegou e se consolidou em uma nova categoria de gênero musical, o pop rural, Esquinas segue em uma direção singular e surpreendente.
O mais recente projeto das cantoras é um convite para reaprender a olhar as coisas simples da vida e enxergá-las de formas belas, já pelo título: um substantivo que parece ter um significado tão banal, mas que representa o encontrar de dois caminhos distintos. A sonoridade do disco lembra esse exato sentido: a dualidade entre o folk melódico herdado dos álbuns passados com a ousadia de um rock anos oitenta, que grita pela liberdade e ama a vida urbana. O álbum é um presente para os apaixonados da dança contraposta de instrumentos, numa combustão de ideias, sentimentos e a maneira de expressá-los. Aqui, a dupla mostra, mais uma vez, como falar sobre amor pode ser um paradoxo entre a complexidade das palavras e a simplicidade das memórias.

O disco nos carrega visualmente e sonoramente para o mundo urbano, a aceleração das pessoas e da rotina e, ao mesmo tempo, nos traz para dentro de nós mesmos, quando somos capazes de nos fazer enxergar a beleza nas mesmas coisas de sempre, só que vistas de ângulos diferentes. Ao acompanhar o amadurecimento da dupla conforme o lançar dos discos, Esquinas traz o impacto das mudanças ao longo de dez anos de carreira, com uma comemoração linda e ousada mostrando o crescimento musical, profissional e pessoal de cada uma, explorando relacionamentos, rotinas agitadas, realidades diferentes e o “e se” que paira sobre o álbum.
Sem quase nenhuma participação de outros artistas e todas as músicas sendo compostas e produzidas por Ana Caetano, o duo convida o público a um universo particular, dentro de situações que, apesar de individuais, são muito coletivas. É fácil se identificar com as dores remetidas e com as experiências apaixonantes que foram vividas. Ana escreve o que todo mundo quer dizer, mas que jamais saberíamos expressar com tanta destreza e beleza quanto ela em suas composições.
Nesta entrevista à Guilhotina, Ana e Vitória compartilharam as referências que inspiraram o álbum, desde influências musicais até elementos literários. Elas falaram sobre a dualidade de emoções presentes na tracklist, a escolha da ordem das faixas e os desafios de construir um novo projeto após uma década de carreira, assim como comentaram sobre a experiência de trabalhar com uma nova equipe e como isso impactou o processo criativo. Te guiamos pelo universo de Esquinas com uma análise completa sobre as 12 faixas que permeiam o disco comemorativo.
Com as faixas Se eu usasse sapato e Minto pra quem perguntar, Anavitória convida o ouvinte a mergulhar em um universo de experimentações rítmicas e reflexões emocionais. A primeira apresenta uma bateria marcante e uma guitarra charmosa, que dão forma à letra carregada de incertezas. Aqui, somos transportados para a inquietação dos vinte e poucos anos, um período repleto de crises e questionamentos sobre o que poderia ter sido diferente. A música reflete uma tentativa quase desesperada de imaginar outros cenários, outras realidades, em busca de um desfecho alternativo para um relacionamento que não deu certo. Desde os pequenos detalhes – como a frase “se eu usasse sapato” – até os desejos não confessados, a música transita por uma vibe indie rock que captura a mente frenética e cheia de dúvidas, em busca de respostas para o que parece irremediável.
Nas disposições das músicas, dá pra perceber uma alternância entre um caminho feliz e alto astral e outro mais melancólico. Como foi o processo de equilibrar essas emoções no álbum, e como foi decidir a ordem das faixas?
“O nosso critério pra escolher a ordem das canções é menos narrativo e mais intuitivo, sabe? O final de uma música que, na nossa cabeça, combina com o início da outra. A gente vai testando várias combinações, até chegar num consenso. No Esquinas a gente sabia qual música começaria e qual encerraria o álbum e isso ajudou a nortear o que iria existir nesse meio do caminho.”
Então, na segunda faixa, Minto pra quem perguntar, a narrativa muda. Mantendo a atmosfera indie rock, a faixa explora uma sensação de desapego e desinteresse. Se a anterior é movida pelas perguntas inquietantes, esta se destaca pelas respostas evitadas, pelas mentiras ditas no cotidiano como forma de preservar a paz interior. A canção é divertida, traz uma busca por liberdade emocional que ignora amarras e rejeita a necessidade de se justificar.
Não sinto nada é mais uma parceria do duo com Jorge Drexler, e assim como fizeram em Lisboa-Madrid, do álbum Cor (2021), as amigas mesclam versos em português e espanhol com naturalidade. A canção é delicada, com a voz suave de Vitória sussurrando em espanhol, junto a um violão que dá o tom melódico à faixa, logo interrompido por uma quebra rápida de ritmo ao incorporar uma melodia mais ágil e envolvente. Ela narra a experiência de alguém que percebe, por meio de gestos e sinais, que não consegue corresponder ao amor de outra pessoa, por mais intenso que este seja (ou deveria ser). Enquanto o eu lírico reflete sobre a falta de sentimento nessa relação, surge o desejo por um amor arrebatador, que desestabilize, mude estruturas e mexa profundamente com o corpo e a alma. Mas, nessa relação em questão, isso simplesmente não acontece.
Se vocês tivessem que transformar o conceito de Esquinas em um único verso do álbum, qual seria?
“Eita pergunta difícil, vaaaaaleime! Não sei nem se eu entendi direito, mas tá! ‘Queria saber como seria se eu tivesse dobrado a esquina’. Essa é uma das nossas grandes inquietações nessa vida. Questionar e supor nossas escolhas e entender o poder e, principalmente, o valor delas a partir disso. Que coisa preciosa é a tal da decisão.”
Esse contraste pode ser visto na diferença da faixa seguinte, Ter o coração no chão. Nela, ambas conversam com os apaixonados, meio a uma batida desacelerada, quase pesada, que suaviza a energia deixada pela música anterior e se contrapõe quando explora a ideia de que o amor não precisa ser avassalador ou passional para ser verdadeiro. Sucessora de Explodir, do disco anterior, a faixa reflete a maturidade conquistada por Anavitória ao longo dos últimos anos, tanto nas letras quanto na sonoridade, sendo um convite a enxergar a beleza nos pequenos gestos, nas rotinas, no que há de mais simples e sincero. A música cresce aos poucos, com Ana trazendo calmaria na voz que narra um amor tranquilo enquanto Vitória traz a segurança de um amor sem pressa; no desfecho, a dupla se encontra: o instrumental ganha força, os vocais se elevam e juntos eles celebram a plenitude de um amor suave e devoto – uma marca registrada dos últimos trabalhos da dupla.
Ainda sobre o equilíbrio de emoções, a dupla conta sobre as mudanças intensas entre as faixas:
“Não sei se foi uma escolha consciente esse equilíbrio de emoções, apesar de achar que o contraste entre melancolia e felicidade seja interessante e talvez a gente tenha ido por aí. Quase um morde e assopra.”
Ponta Solta se destaca pela crueza de sua construção, começando com a voz e o violão de Ana de maneira intimista e despojada. A música narra o início de uma relação, descrevendo os detalhes que passam despercebidos para a maioria das pessoas e como a paixão nos leva a enxergar as minúcias desse alguém, que logo se tornam pistas de algo maior: uma entrega e um apego que, mesmo quando há relutância, insiste em ficar e te obriga a se entregar.
A suavidade da melodia evoca a essência de trabalhos anteriores, como no álbum N, mas mantém a identidade sólida que permeia Esquinas. A letra reflete a beleza de encaixar alguém na rotina, uma entrega que envolve alma, corpo e coração, e segue a mesma linha da faixa anterior. Nas linhas “corte de papel não dói, mas não sara, e o nosso encontro foi assim”, o duo descreve muito bem a percepção madura sobre as relações, e a canção equilibra o tom reflexivo com batidas mais marcantes, trazendo uma melodia que carrega a assinatura típica de Anavitória: intimista, arrebatadora e poética.
A faixa Espetáculo estranho é, sem dúvidas, uma das mais atrevidas e imprevisíveis do conjunto. Vitória inicia a canção com um solo suave e minimalista, que parece prometer uma delicadeza ao longo da música. No entanto, há uma quebra brusca e repentina assim que Ana entra com um vocal marcante e um instrumental pesado, criando um contraste que surpreende – e, talvez, até desconcerte. A melodia, ancorada por guitarras sutis e uma instrumentação que cresce de forma orgânica, cria um ambiente contemplativo que envolve o ouvinte e o faz mergulhar em uma jornada interna cheia de questionamentos e epifanias.
Um clima com um toque quase Rita Lee é adotado na canção, abrigando um instrumental inquieto e desconfortável, que conversa com a confusão e os sentimentos inesperados descritos na letra. É como se a música traduzisse a instabilidade e as surpresas de um amor não planejado, mas intenso, e mesmo com o incômodo causado pelo arranjo dos instrumentos, evolui para algo mais confortável, refletindo a estabilidade encontrada na escolha por um amor novo e surpreendente.
Espetáculo estranho é uma música que ressoa profundamente com quem já viveu os altos e baixos de um relacionamento e que encontra beleza até mesmo no momento da despedida.

A esperada Água-viva mergulha o ouvinte em uma atmosfera melancólica, característica das artistas, remetendo especialmente ao álbum O Tempo É Agora. A faixa também evoca reflexões sensoriais e meditativas, como uma referência ao livro homônimo de Clarice Lispector. Assim como na obra literária, Água-viva explora temas como o efêmero, a plenitude e o mistério do amor e da existência, criando uma experiência sensorial e íntima. O tom de despedida permeia por toda a faixa, trazendo à tona a dor de um “adeus” inevitável, quando ficar já não é mais uma opção, descrevendo como uma saudade que se torna física – a pessoa precisou partir, mas o amor não deixou de existir.
O minimalismo instrumental, desde o piano aos vocais delicados e entrelaçados de Ana e Vitória, intensifica a dualidade entre a dor e a gratidão. Sendo assim, a crueza emocional da faixa reflete a habilidade da dupla de compor sobre a permanência do amor mesmo quando a relação chega ao fim. Água-viva é, ao mesmo tempo, melancólica e reconfortante, uma música que convida o ouvinte a aceitar e abraçar a impermanência.
O Esquinas é sonoramente muito diferente de seus outros trabalhos, com muitas novidades de ritmos e melodias, além de títulos curiosos. Quais foram as referências musicais e não musicais que permearam o desenvolvimento do disco e a nomeação das faixas?
"A gente tinha um apanhado de sons que tínhamos vontade de explorar, mas era algo muito mais subjetivo do que uma referência específica. Fizemos uma playlist aleatória, sem muito contorno. Lenine e Tame Impala na mesma lista, pra você ter noção, hahahah. A busca era um som que trouxesse mais energia pro nosso show e a nossa maior vontade era experimentar novos caminhos, sem se preocupar com coerência. Tem um livro, que dá nome a uma das canções do disco; Água Viva o nome dele. É uma baita referência não musical. A Clarice bate muito no ponto de lutar pela liberdade das sensações e dos pensamentos sem que eles sirvam pra alguma coisa. A graça de não fazer sentido. Esse foi um livro que deu coragem pra testar o que desse na telha."
Para surpreender, a faixa Eu, você, ele e ela transforma completamente a atmosfera intensa que a música anterior trouxe, sendo uma das faixas mais energéticas e cativantes de Esquinas, ao explorar com leveza e provocação as possibilidades de um amor plural. A partir de uma abordagem fresca e despretensiosa, a música traz um tema que foge ao convencional: os encontros, desencontros e possibilidades de conexões entre quatro pessoas – o amor em suas diversas formas. Conforme a música avança, o ritmo e os vocais crescem em intensidade, no embalo de uma melodia ensolarada, guiada por acordes marcantes e uma percussão contagiante, que cria um tom provocativo junto com a letra que conta algo irresistivelmente divertido, entre o imaginável e a idealização de algo até que finalmente chegue à realidade.
Mesma trama, mesmo frio marca mais uma uma mudança brusca no álbum, trazendo uma atmosfera carregada de nostalgia e sensibilidade emocional. Em contraste com a faixa anterior, a melodia é introspectiva e delicada, guiada por dois violões e uma pegada acústica que evoca um tom quase melancólico. Já no início da faixa, Ana canta sobre o fim de uma história e a dor de apagar a intimidade compartilhada – como se terminar um relacionamento fosse também matar as memórias que o sustentaram.
Tal qual em Caixa Postal (feat. com Lagum, de 2023), a canção aborda o vazio deixado por uma relação que se converte em quase nada, trazendo uma súplica para não deixar morrer as memórias de um amor que um dia foi bonito. A música se intensifica com uma mensagem ainda mais profunda: a recusa de aceitar o padrão de afastamento imposto pelo término e o desejo de preservar o carinho e a intimidade, mesmo que em uma nova forma de relação, tal qual vemos no zelo da letra de Água-viva. É uma faixa densa, emocionalmente carregada e que mantém viva a essência sensível e nostálgica da dupla.
Qual é a maior diferença entre o que vocês sentem ao lançar Esquinas em comparação com seu primeiro álbum?
"É outro processo. Outro tempo. Acho que lançar um trabalho pela primeira vez tem uma despretensão que só acontece ali. Uma magia que mora nas primeiras vezes. Agora a gente experimenta a magia da bagagem e da experiência. É muito delicioso saber o que se quer. Os dois momentos são igualmente maravilhosos, mas não tem nada a ver um com o outro."
Qual foi a parte mais desafiadora e a mais gratificante do processo criativo desse novo trabalho?
"Acho que montar um novo time foi uma das coisas mais desafiadoras e também mais gratificantes desse disco. Trabalhar com pessoas que não tínhamos nenhuma prévia e intimidade deu um medo danado, mas quando conseguimos quebrar o gelo e falar a mesma língua, foi muito forte. O Jan, Pege, João e Biel trouxeram frescor pras nossas músicas. E, meu Deus, como isso é bom!”
Chegando na reta final do disco, Quero contar pra São Paulo começa com uma promessa animada e cumpre esse sentimento ao longo da música, especialmente no refrão, em que celebra o entusiasmo de um amor novo, forte e impossível de conter. A letra exala o desejo de gritar ao mundo – ou à cidade inteira – o quanto se quer tudo sobre a pessoa amada. O instrumental se destaca por sair um pouco do padrão habitual de Anavitória, mas, ao mesmo tempo, faz parte da proposta de renovação que permeia Esquinas. As vozes delas soam como se estivessem sorrindo, transmitindo a leveza de amar alguém, terminando a canção com uma declaração direta e repetitiva – “eu te amo, te amo, te amo” –, que reforça a intensidade romântica de forma simples e genuína e diverte o ouvinte apaixonado.
Mas o ritmo volta a mudar em Doce Futuro, no mesmo indie rock das faixas iniciais. A canção traz a ideia esperançosa de um futuro (ainda desconhecido, mas aguardado), que abre os braços para amores, mudanças e aprendizados. Porém, aqui, a perspectiva é mais madura e cheia de possibilidades, refletindo a liberdade de ser quem se é e a alegria de ainda ter muito pela frente – de errar, acertar e, com isso, crescer.
Doce Futuro é a celebração da autonomia e da solitude, tão bem trabalhada ao longo do disco, em uma faixa que convida o ouvinte a experimentar a vida sem medo, carregando a mesma doçura e liberdade que marcaram o segundo álbum da dupla, O Tempo É Agora. Com uma visão otimista do que vier pela frente, Ana e Vitória cantam sobre experiências novas em um “futuro azul e doce” e gritam, como um lema, os versos: “quero amar quem eu quiser amar, quero amar quem eu puder”.
E, por fim, para concluir a valsa lírica do álbum, vem Navio ancorado no ar, como um ponto de repouso nostálgico e ambíguo, característico deste projeto. Assim como em outras faixas, a música explora a dualidade entre a ansiedade por um futuro incerto e a melancolia por amores e momentos que já passaram, sendo descritos no desejo por uma realidade inconstante, que se mistura à reflexão sobre as infinitas possibilidades que guiam nossas vidas e pensamentos em direções inesperadas.
Essa canção foge dos padrões de mainstreaming e se mistura com as sensações que as cantoras expressam em A gente junto (2019), Terra (2021) e Barquinho de papel (2022). A melodia minimalista, sustentada por violões delicados e arranjos sutis, cria uma atmosfera etérea de reflexão diante do desconhecido, assim como uma busca pelo encontro consigo mesmo e com os outros.
Vitória encerra a música recitando um poema com uma sensibilidade quase teatral, evocando a necessidade de tranquilidade e a busca pela segurança que a certeza pode trazer. A união dos vocais das duas, somada ao instrumental que se transforma ao longo da faixa, reforça a sensação de um ciclo que se fecha, mas deixa espaço para novas direções, em uma sensação de suspensão que acompanha a imagem central do “navio ancorado no ar”, um símbolo poderoso para algo que está parado entre o desejo de seguir em frente e a hesitação em deixar o passado para trás.
Houve alguma dificuldade para escolher quais músicas fariam parte da tracklist do álbum? Alguma que ficou de fora ainda mexe com vocês?
“Acho que disco tem exatamente o que era pra ter. Tudo o que ficou de fora conta uma outra história. Quando ouvimos todas as músicas que fizemos nesse intervalo de quatro anos, ficou muito evidente o que entraria nesse álbum e o que não entraria.”
Com Esquinas, Anavitória entrega um trabalho que emociona e provoca.
O álbum é uma mistura de nostalgia, esperança e busca por liberdade, guiando o ouvinte por esquinas que representam encontros, desencontros e possibilidades em faixas surpreendentes. É um disco que convida à introspecção, para ser apreciado com calma, como um bom livro ou uma conversa longa e significativa. No Esquinas, Anavitória se aventura pela irregularidade da vida e as inúmeras possibilidades que nos cercam de uma forma encantadora, demonstrando, mais uma vez, maturidade musical e lírica, sem perder a essência que as tornou tão especiais. Uma obra para sentir, refletir e guardar no coração.
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